O ato extremo

Michel Laub, no caderno Ilustrada da Folha de São Paulo – 10/5/2013

Dois mitos de nossa época ajudam a constatar como o romantismo ainda é influente.

O primeiro mito, adaptado dos escritos de Rousseau, é o da pureza original: a ideia de que a cultura mais desvirtua do que aprimora os homens e o meio ambiente.

O segundo é o do artista torturado, que sacrifica o presente do corpo em nome da eternidade da obra. Uma frase célebre de William Blake, “o caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria”, explica muito do fascínio gerado por nomes como Jim Morrison, Janis Joplin, Jimi Hendrix e, mais recentemente, Amy Winehouse e Kurt Cobain.

O exemplo de Cobain, cuja morte completou 19 anos no mês passado, ajuda a entender a singularidade de “Elena”, documentário de Petra Costa que estreia hoje na cidade. Tanto o ex-cantor do Nirvana quanto a irmã da cineasta cometeram suicídio, o mais extremo dos atos tanto real quanto simbolicamente.

Elena era uma atriz mineira que estava tentando a sorte em Nova York, em 1990. O documentário refaz sua trajetória por meio de fotos, filmagens caseiras, gravações em áudio, depoimentos e um manejo bastante sensível de luz, ritmo e trilha sonora. É uma história de dor familiar e pessoal, que na superfície evoca fatos, pessoas, lugares.

É também uma história de silêncios, que faz o espectador imaginar aquilo que está ou poderia estar em suas lacunas. Uma tentativa de comunicar, quem sabe, o que a linguagem pouco permite: a perplexidade de quem sobrevive, o que, antes de virar memória resignada, é um misto de afeto, culpa e um inevitável sentimento de traição.

Essa perplexidade está sempre presente no suicídio, por mais que haja fatores que pareçam justificá-lo. Em casos como o de Kurt Cobain, é tentador transferi-los para a esfera da cultura, transformando um tiro de espingarda na própria cabeça numa espécie de resposta – à ganância da indústria cultural, ao circo da mídia e do público, como se a sociedade é que houvesse matado este bom selvagem milionário e viciado em heroína.

No caso de Elena, que era uma artista, mas não uma celebridade, as pressões eram de outra natureza. Isso não impede que as consequências delas também sejam lidas culturalmente. Quer dizer, numa época em que se preza de forma quase militar a saúde do corpo, com a prescrição de dietas, condenação do fumo e incentivo à prática esportiva, no que diz respeito a mente/cérebro há um glamour em torno do comportamento não convencional.

Assim, é difícil achar filme, série, novela, peça publicitária ou post em rede social que pregue as virtudes da vida contida e equilibrada. Nada é mais popular do que parecer intenso, inconformado, até neurótico e obsessivo, uma forma atenuada – e não menos egocêntrica – do clichê que vê na genialidade um prolongamento da loucura.

O filme de Petra não cai nesse discurso simplório. O primeiro de seus vários méritos é não relacionar a depressão de Elena – que certamente diminuiu a margem de suas escolhas finais – com seu talento e sensibilidade. A atriz é lembrada no que tinha de generoso e carismático apesar do seu problema, e não por causa dele.

Em quase 20 anos de interpretações sobre a morte de Kurt Cobain, poucas obras foram capazes disso. Uma das exceções é “Últimos Dias”, de Gus Van Sant. Com outro registro e intenções, um protagonista não por acaso chamado Blake e a rotina anestesiada de seus momentos derradeiros, o longa descarta motivos externos para jogar luz em algo essencialmente interno.

Não é uma abordagem fácil de digerir. Mitos não são mitos à toa. Como toda teoria estética e política, o romantismo propõe um sentido para o que nos parece insuportavelmente gratuito – no caso, ir contra o instinto da espécie, deixando um rastro de sofrimento sem dar nada em troca. Nem sabedoria, nem força nascida da dificuldade, nem simbolismos de qualquer espécie.

Como Van Sant, Petra Costa prefere encarar esse vazio, numa tentativa sempre vã de compreensão, a julgá-lo. Mas, ao contrário de “Últimos Dias”, “Elena” celebra o que vem antes e perdura além da morte: a beleza difícil de um amor que passou pelo pior dos testes.

*Michel Laub é escritor e jornalista. Publicou cinco romances, entre eles “Diário da Queda” (Companhia das Letras, 2011). Escreve a cada duas semanas, sempre às sextas-feiras, na versão impressa da “Ilustrada”, caderno de cultura do jornal Folha de SP.

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