O ESTATUTO DO DOCUMENTÁRIO: VERDADE OU ENCENAÇÃO?
2 de agosto de 2013

ELENA é um filme potente, assim como o próprio suporte artístico da obra, o cinema. Hoje, a chamada sétima arte, junto à televisão e aos meios de comunicação digital, constitui-se como espaço privilegiado de projeção de cultura, disputas ideológicas, construção de imaginários, referências, valores e sentimentos. O cinema proporciona uma experiência ao mesmo tempo estética e cultural, que pode ser interpretada de muitas formas, de acordo com a bagagem e o repertório dos espectadores.

Para o cineasta brasileiro Fernando Meirelles, “ELENA é uma experiência cinematográfica rara. Isto é devido à profundidade com que aborda as relações emocionais entre as três personagens e pela delicadeza poética de suas texturas, sons e texto. É como um fio que se desenrola na nossa frente e de repente estamos presos num nó sem saída. Mas o tempo ou a própria vida se encarrega de transformar o que era tragédia em memória, desfazendo o nó e deixando a vida voltar a fluir. Um filme que provoca 60 insights por minuto”.

Esse emaranhado de fios presentes em ELENA fornece elementos privilegiados para o exercício do pensamento e olhar críticos em relação ao cinema brasileiro, em particular o documentário.

O teatro da vida: a imagem e o real

O documentário ELENA é uma história familiar, mas é também uma construção cênica. Ao reconstruir a memória de sua irmã a partir de seu olhar e da linguagem cinematográfica, Petra coloca seu filme entre o encenado e o não encenado, entre a verdade e a representação dessa verdade.

Nas palavras de Daniela Capelato, consultora criativa do filme, ELENA apresenta uma “co-extensividade entre o real e a imagem, entre o fato e o espetáculo. É o ‘teatro da vida’, onde Petra representa Elena, Elena representa Petra e Li An (a mãe) representa Elena, até que ‘tudo vira água’, vira filme ou memória, como diz uma das personagens do filme: ora protagonista, ora coadjuvante, ora diretora, ora atriz”.

Essa dubiedade das personagens e os limites tênues entre real e imagem, na opinião do cineasta João Moreira Salles, resgatam os primórdios do gênero documentário ao questionar a relação entre ficção e não-ficção.

Em depoimento sobre o filme durante o debate “ELENA e a perspectiva da encenação”, realizado no Itaú Cultural, Salles conta que o primeiro filme da história do documentário é uma “reencarnação”: a película original pegou fogo e pediram ao personagem filmado, um esquimó, que refizesse tudo outra vez. Nanook do Norte, do americano Robert Flaherty, retratou os esquimós a partir de seu ponto de vista, desejoso de “resgatar” as tradições desse povo. Enquanto esses esquimós já caçavam com rifle e já não se alimentavam exclusivamente de caça, por exemplo, Flaherty pediu a eles que, para as filmagens, usassem os arpões à moda antiga, e colocassem a caça em primeiro plano de sobrevivência.

Assim, o primeiro documentário da história já nasceu sob a polêmica pergunta “o que é um documentário?”. E outras se seguiram: encenações para a câmera são permitidas? O que é real? Devemos ou não ter compromisso com a verdade? Compromisso de que natureza, e qual verdade?

A questão é vasta e vem sendo discutida pela filosofia muito antes de começar a ser discutida pelo cinema, mas o próprio João Moreira Salles nos ajuda a responder essas perguntas em seu texto A dificuldade do documentário:

“[…] O filme de Flaherty não é apenas o registro do esquimó Nanook. É uma história construída, de rija ossatura dramática, que pega o espectador pela mão e o leva fábula adentro (a palavra não está empregada inocentemente) até a conclusão final. Essa estrutura narrativa é uma das características essenciais do documentário. É ela que impede que se dê o mesmo nome aos filmes de variedades que já existiam antes de Flaherty. Como teria afirmado o escocês John Grierson, outro grande pioneiro do cinema não-ficcional, ‘Flaherty percebeu que o cinema não é um braço da antropologia nem da arqueologia, mas um ato da imaginação’.

[…] De modo geral, desde Flaherty podemos dizer que todo documentário encerra duas naturezas distintas. De um lado, é o registro de algo que aconteceu no mundo; de outro lado, é narrativa, uma retórica construída a partir do que foi registrado. Nenhum filme se contenta em ser apenas registro. Possui também a ambição de ser uma história bem contada. A camada retórica que se sobrepõe ao material bruto, esse modo de contar o material, essa oscilação entre documento e representação constituem o verdadeiro problema do documentário. Nossa identidade está intimamente ligada ao convívio difícil dessas duas naturezas.”

(In: MARTINS, José de Souza, ECKERT, Cornélia e NOVAES, Sylvia Cainby. O Imaginário e o poético nas ciências sociais. São Paulo: Edusc, 2005. Cap. 03, p.57–71)

Ainda em seu comentário sobre o filme ELENA durante o debate do Itaú Cultural, Salles relembra que outro grande documentarista, Jean Rouche, chega à conclusão que não existe um documentário em que não haja encenação. “Pessoas encenam seu personagem diante das câmeras. E isso não deveria ser rejeitado, ou considerado como artificial. A pessoa se recria, e está dizendo algo verdadeiro, está dizendo como ela quer ser vista”, sustenta Salles, segundo quem a corrente atual do documentário, muito relacionada à psicanálise, aceita a encenação como parte construtiva da narrativa, e não como mentira.

A história narrada em ELENA, assim, não é mais ou menos verdadeira por conter elementos de encenação, como o texto em off da diretora, a recriação de partes do diário de Elena e a atuação de sua própria irmã e diretora, Petra, como personagem. A própria natureza do filme, com o processo de filmagem e montagem, torna esse aspecto intrínseco ao próprio ato de fazer cinema. A encenação ganhou uma função prática na narrativa, e virou substrato do próprio filme. Por isso, Daniela Capelato, mediadora do debate no Itaú Cultural, reitera que ELENA nos chama para refletir sobre a questão da perspectiva da encenação como teatro da vida.

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