O peso e a leveza da água

por: Isadora P. no blog Desencaixotando Rita – 12/6/2013

Semanas se passaram e eu prometi escrever sobre Elena.

Mais uma semana se passou e eu prometi tomar coragem, voltar no cinema e assistir novamente. Para criar impressões mais precisas, menos diluídas pelo choro convulsivo da sessão.

Os óculos tiveram que ser retirados. Embaçavam.

Eram limpos, mas embaçavam outra vez.

Mas não consegui voltar.

O medo era ter outra experiência completamente estarrecedora e quase incapacitante de emoções em torvelinho, despertas – não querendo ser adormecidas à força por nenhum motivo deste mundo.

A verdade é que não consegui de parar de chorar nem para sair do cinema.

Constrangedor.

Para voltar para casa e não conseguir tirar o filme da cabeça.

Elena all over and over.

Os dias seguintes foram de pesquisas sobre a diretora/personagem/atriz Petra Costa e sua irmã mais velha, a atriz Elena Andrade. Elena.

Eu me apaixonei quase de imediato pela expressividade e a beleza trágica de Elena. Seus movimentos etéreos, em torno de um eixo imaginário me deixaram paralisada já nos primeiros instantes do filme.

Eu pressenti um perigo. Estava para cruzar o limiar onde uma experiência estética está prestes a se tornar algo mais.

E cá estou eu.

Eu, eu tenho um filme entalado na garganta. E Elena aderida aos tecidos finos e escavados da minha retina. Preciso fazer algo a respeito.

É difícil realizar a real dimensão da dor da tríade matrilinear de personagens, Petra, Elena e sua mãe, Li An.

É assustador como as três se entremeiam no documentário, se misturam e parecem tornar-se um único personagem, algum arquétipo feminino trágico e terrível, uma heroína grega e clássica. Universal. Qualquer coisa entre Ofélia, Electra, Circe e heroínas sem nome.

A ferida parece antiga, ancestral e é legada às descendentes, que precisam fazer algo a respeito. Depurar a dor em arte, dissolver-se para esquecer.

Mas é realmente possível esquecer?

Elena, de Petra Costa, me parece mais bem-sucedido na tarefa de propor uma sutil diferenciação entre as personagens, mãe e irmãs. Uma tentativa de escapar a uma maldição.

Eu mesma não consigo esquecer Elena.

Não me surpreende a dificuldade daqueles que a conheceram.

A intensidade do seu desejo e  o seu compromisso com uma ética  maior do que a vida me entristecem e me comovem mais do que sou capaz de dizer.

Muitos são os elementos que contribuem para o documentário ser uma experiência avassaladora. Os materiais de arquivo, a escolha das cores e texturas granuladas para a fotografia, a trilha sonora e a belíssima (essa sim de impacto arrasador para mim) desembocadura líquida do filme.

A água é um fio condutor, que desestabiliza e acolhe, um abrigo/abismo para onde tudo se dirige.

A construção narrativa utiliza os recursos que estavam ao alcance da diretora: suas próprias memórias, materiais audiovisuais de arquivo sobre a irmã, textos, entrevistas, diários e cartas gravadas em fitas. Esses mesmos recursos travam conosco o desafio que é primordialmente de Petra Costa: encontrar os vestígios de Elena, seu corpo, seu peso e sua imagem perdida para sempre. Para assisti-la partir.

Um dos momentos mais agudos desta tentativa – vã, ao meu ver – é quando a autópsia de Elena denuncia o peso de seu coração. 300g.

Será possível que o coração de Elena pesasse somente trezentos gramas?

Mais me parecem toneladas e toneladas.

Esse peso me parece congruente com a leveza de seus movimentos no palco ou sob o olhar amador de sua câmera. O paradoxo do peso e da leveza pode ser uma experiência letal, sabemos.

Se a memória se dissipa e se perde na água, é a água também que, por outro lado, guarda todas as memórias do mundo. E lá ficam, encapsuladas, como ostras, esperando ser recontadas.

A verdade é que, assim como Petra, a existência das sereias sempre me pareceu inquestionável.

Índice

(346 artigos)