Inundamentos nas imagens dançantes de Elena

Por Weynna Dóri – blog Os fazedores: Uma aproximação às poéticas contemporâneas – 15/11/2013

Ao começar a escrever sobre um filme, recolhia na atmosfera palavras soltas, que me ocorriam enquanto eu assistia o filme. Seriam insights? De fato transfiguravam como revelações urgentes que precisavam ser ditas ainda com a influencia do “calor do momento”, na frescura da experiência… A construção dos textos sempre eram como uma escultura descuidadamente criada com essas palavras afetadas (afetos) que minha mente disparava de forma aleatória, e que cabia a mim estruturar e dar sentido. Eram, sentimentos, sensações, desejos e figuras verbais que juntas, compunham uma arriscada posição, que chamara de “crítica”.

Há algum tempo, com as leituras de Rancière sobre “a fábula cinematográfica”, os conceitos novos que perturbaram minha cabeça, após a descoberta do manisfesto Knok escrito por Dziga Vertov, em defesa do seu cinema-verdade… Fui violentamente sacudida sobre as noções de cinema que havia encontrado em Benjamin no seu ensaio sobre A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica, no qual já vislumbrava o poder de perspetiva do cinema, mas ainda restringindo-o a uma operação que técnica e seus aspectos representativos e perceptivos.

Revendo o olhar em relação ao que chamava de “crítica cinematográfica”, ou seja, um olhar a cerca do cinema enquanto objeto de arte que pensa. Punha em dúvida um exercício que era como uma terapia. Falar sobre filmes sempre seria um prazer, e com incentivo, fui conduzida e desafiada a por no papel inerte ideias em movimento, em fluxo constante como as imagens que me instigavam e inspiravam nas telas. Queria compartilhar das inúmeras questões que me inquietavam naquelas obras, queria instigar os outros a ver o que eu via, e mostrar-lhes como via. Queria tornar “material” de pesquisa a experiência de ver um bom filme e de pensar a partir dele. Se não o achasse bom, queria entender o porque disso, e falar a respeito desses aspectos que considerava “menor” comparado a outros que poderia identificar como suficientes para que o filme fosse visto, ainda assim. Não queria apenas dar minha “opinião” sobre… Mas ainda não conseguia dizer do que se tratava aquela proposta de me expor na escrita com um filme, por na internet para que todos pudessem ler e insistir na ideia de que um filme não era só um filme. Que o cinema é “a arte moderna por excelência”, como diria Rancière, e dela um campo enorme de possibilidades de pensamento se abria.

A escolha dos filmes dos quais falar, era uma exposição pessoal, e contudo, uma posição estética. Temáticas como escrita, perversões, sofrimento, loucura, sexo, morte, vida, arte… chamavam a atenção por serem fortes, densas, intensas e puras, no sentido de que atingiam por provocarem algo passível a qualquer ser humano que é capaz de se inquietar, e talvez por serem potências capazes de romper com as categorias romantizadas, já tão debatidas no universo do cinema, tão ou mais humanas quanto os clichés que nos faziam verter lágrimas injustificáveis. Essas temáticas, ditas polêmicas, perturbam e muitas vezes provocam repulsa, angustia, desconforto, afronta contrária a identificação comum nos espectadores, parecendo mais fantasiosas ou “falsas”, elas por vezes perfuram a película que separa a ficção de quem a vê, talvez pelo simples fato de serem obscenas.

Saber que é um filme, que é criação ficcional, que muitas vezes é produto de uma industria milionária, que é encenado, que é entretenimento… E mesmo enxergando essa distância e talvez exatamente por enxergar ela, ainda assim, não sair incólume da experiência de ver um filme. Isso me intrigava. Talvez por esse motivo os documentários me atraiam mais. Como sempre foram considerados filmes de reflexão, detentores de uma formula mais próxima da realidade, não seria tão absurdo levar esses filmes tão a “sério”. Não sei se essa seria a justificativa para escolher esse gênero. Mas de fato, na arte do documentário encontro um campo de flutuação sensível, que possibilita uma proliferação de sentidos novos para se pensar a vida, o mundo, o homem… Me inquietava entender como esse homem se enxerga nessa relação, na qual se vê atravessado por potências do mundo? Como sente o mundo em si, diante de tudo que um filme suscita?

Voltando a experiência da escrita com o filme, confesso que meu modelo de criação crítica não conseguiu efeitos ao se encontrar com a experiência poética de Elena (2012). O polêmico documentário produzido no Brasil, dirigido pela estreante em longa metragens, a até então atriz e agora diretora Petra Costa. Inicialmente Petra propõe construir toda uma narrativa que desse conta de solucionar o enigma: Quem é Elena? Após reconstruir a memória da atriz Elena Costa, sua própria irmã, que comete suicídio aos 20 anos de idade, Petra se mistura as lembranças e cria uma confusão entre as duas. Os desdobramentos que essa tragédia provocou na família, mais especificamente na diretora, são a matéria prima para construção de um filme documentário que emudece, paralisa, afoga qualquer formula já estabelecida de escrita crítica com um filme. Primeiro, porque talvez o próprio filme não segue as formulas técnicas pautadas por uma tradição do cinema documental; depois, porque ignora a linha tênue entre ficção e realidade, enquanto trata de um assunto particular e obsceno, perverte a lógica da representação, fazendo a realidade ainda mais nua e crua.

Ao sair do cinema, após Elena, só se consegue pensar em recuperar o fôlego provocado pelo inundamento que seu corpo sofre na imersão do filme. A sala de cinema aos poucos vai se tornando como uma espécie de aquário, seu corpo permanece submerso em um universo líquido, fluido e sensível de imagens que se movimentam projetadas entre ar e água. Num corpo-filme que nos mantem paralisados diante de suas imagens dançantes.

Durante meses fui incapaz de escrever uma uma palavra sobre o que havia sido essa experiência estética única. Porque antes era necessário tentar entender que aspectos são esses que inundaram o corpo-filme, ao ponto de provocar novas formas de dizer, de ver, de ouvir, de fazer e de ser, que experimentavam algo indizível e invisível  no contato com o filme.

Distanciando-se da forma representativa criada pelo imaginário social confortável, Elena abre espaço para a movimentação da palavra, do sons, das imagens, para a dimensão do afeto.

Encontro no filme documentário Elena, essa superfície liquida e complexa que propõe possibilidades distintas no campo de flutuação da experiência sensível. Que imagina a palavra e poetisa a imagem, provoca o afeto e nos instiga a pensar sobre imagens e palavras, cinema e poesia, realidade e ficção, a inércia do papel/tela e o movimento do mundo, tempo e espaço… Ou seja, pensar a vida como esse fluido que nos envolve, que nos compõe e ao mesmo tempo nos afoga. Elena e suas imagens dançantes nos propõe um respiro nessas águas, um fôlego de vida, que se cria desses dissensos, algo que ainda não está dado, que anseia por vir.

Como testemunhar a dor da perda, a ausência, o vazio da morte? A diretora incorpora todos esses sentimentos, para dar a ver o obsceno, o que não se fala, ou pouco se fala, mas quase nunca se mostra, arrastando pela fissura da arte, um sensível que escorre para um dizível, enquanto nos deixa às margens do visível: forçando a passagem e desconfortando a imagem representação, trazendo à superfície um fôlego para se pensar o mundo, experiências de vida e percepções através da construção ficcional do cinema documentário.

Dando voz a um “outro” dentro de si, a diretora/personagem esgota através do testemunho e do resgate de lembranças, a dor e a impossibilidade de lidar com a morte. Criando possibilidades novas de vida quando põe imagens, palavras e a técnica cinematográfica para dançar.

Tudo começa na atmosfera onírica das rememorações de um sonho, em que Petra vê sua irmã enroscada num emaranhado de fios elétricos mas quando se dá por si, percebe que é ela mesma que está lá, de onde cai e morre… Essa confusão entre as identidades das duas é a partícula que enuncia o filme, como numa carta onde Petra afunda num rio de memórias, numa busca particular, reconstituindo sua vida e encenando sua própria morte, realiza o sonho da mãe e da irmã de fazer cinema, e ao mesmo tempo transforma o filme numa ressurreição da sua irmã e a sua própria. Para a partir daí ganharem vidas independentes.

Elena é uma “memória inconsolável”, na qual a diretora Petra mergulha, a fim de encontrar a si própria. Movida por memórias submersas em dor, ausência e saudade, nos convida, ou melhor, nos arremessa, num turbilhão de imagens, que inunda nossos pulmões delicadamente ao ponto de nos afogar violentamente num rio de sensações. Por fim, nos faz emergir à poética sublime, ainda simples e intimista que perpassa os limites da representação, enquanto ao mesmo tempo se desfaz dessa lógica. O que permite dar a ver o mundo a partir do espelho d’água da memória e com ele afundar, decantar e, contudo, encontrar ar puro.

A construção do filme não poderia ser outra, que não audiovisual. A pesar da ideia de Petra partir da descoberta de um diário escrito por Elena na adolescência, quando sofria dos mesmos problemas existenciais que ela passava no momento, e na mesma idade. Os vestígios são imagens, palavras e sons em projeção a vida, dos quais provavelmente a linguagem heterogênea do cinema seria a única, talvez, capaz de dar conta de resignificar o tanto de elementos e aspectos subjetivos, também dado ao privilégio da experiência coletiva que ele proporciona.

O cinema documental, por ser esse “corpo”, que pulsa e canaliza em suas veias; signos, em fluxo constante, ora fluido, ora denso e que segundo o filósofo Jacques Rancière: “Joga com a combinação de diferentes tipos de rastros (entrevistas, rostos significativos, documento de arquivo, trechos de filmes documentários e de ficção etc.) para propor possibilidades de pensar” uma vida que não conhece histórias por se tratar de situações abertas em infinitas direções, e não propõe ou orientam fins, mas um movimento continuo feito de uma infinidade de micromovimentos.

São memórias represadas que confluam na criação de uma narrativa própria, fluida que nos carrega pela correnteza de imagens: fotografias sonoras, marcadas por uma voz que confunde e inebria, quando misturadas a gravações de fita cassete e uma espécie de reverberação de ecos numa concha do mar; visuais, dilatando nossas pupilas para receber a luz do óbvio em forma sensível, como se acabássemos de sair de um abismo. Em outros momentos marejando a íris das lentes, capaz de nos embaçar a visão diante da paralisia do encontro com as cenas.

Elena é composto de poesia imagética, que encontra na arte uma fissura na qual as imagens contam, soam, enganam, encantam e provocam o presente, e ainda articulam novos porvires.

A mistura de texturas da fotografia granulada dos vídeos caseiros, desfoques de câmera na mão, as luzes dos faróis, o reflexo do sol na água ofuscando nossa visão, entrevistas em super close, são elementos que inicialmente assumem para o filme uma postura clássica da linguagem documental, reunindo num trabalho belíssimo de montagem imagens de arquivo de jornal, fotografias antigas, reconstruindo memória. Mas aos poucos transfigura para uma poética autoral, aproximando-se de nós ao ponto de agredir o real, que nas palavras do próprio Ranciére “precisa ser ficcionado para ser pensado”. Enquanto a câmera, se mostrando sempre presente, onde, não só registra sua impressão muda, mas também atua como personagem, apresentando a nós espectadores os fatos e formas de pensamento decorrente da confusão desses fatos que com a manipulação ganham potências significantemente novas.

O filme traz uma ligação forte com o dançar: a escolha pela câmera na mão nos conduz por um movimento que vai além dos fotogramas correndo pelo tempo. Porque é um movimento orgânico e múltiplo que mistura o fazer filmar, o fluxo da vida, a natureza que pulsa, no tempo e no espaço, que tanto nos sustenta no ar, quanto nos faz flutuar nas águas. Permitindo uma leveza de movimentos puros, que à técnica e a linguagem documentária “definem variações das intensidades sensíveis, das percepções e capacidade dos corpos. Assim se apropriam dos humanos quaisquer, cavam distâncias, abrem derivações, modificam as maneiras, as velocidades e os trajetos segundo os quais aderem a uma condição, reagem a situações, reconhecem suas imagens”, explica Rancière.

O ato estético dessa câmera-olho faz sentir a intensidade do mundo, enquanto transbordam da fragilidade das mãos imagens que precisam dançar para existir. Como se a potência de dizer dessas imagens precisasse sair do plano estável do visível apenas, para ser passível de movimento, mesmo que não saindo do lugar (tela). Numa corrente que ora puxa para o fundo da realidade, ora joga nas margens, e não tardando muito é devolvida à aleatoriedade das águas e boia descoordenada. E dessa dança das imagens que a poesia de Elena transborda, e enquanto poesia não deve mais que prestar contas com o que seria da ordem da verdade dos fatos ou dos enunciados narrativos, já que a poesia se apresenta como um arranjo determinado dos signos da linguagem cinematográfica. Não separando linguagem de realidade, mas usando dela para atravessar a materialidade do mundo, e ainda da técnica “sob a forma muda das coisas e da linguagem cifrada das imagens”.

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