Elena e as sereias

Por Marco Spinelli – 15/9/2013

Durante a sua longa e dolorosa jornada de volta à Ítaca, Ulisses desceu aos Infernos, enfrentou todo tipo de monstro. Várias vezes ele teve que atravessar, literalmente, passagens com seres monstruosos. Numa delas, as fragatas de Ulisses teriam que atravessar mares infestados não de tubarões, mas de seres ainda mais terríveis, as Sereias. Esses seres mitológicos, metade peixe, metade ninfas, emitem um canto indescritível que arrastam os marinheiros para o fundo do mar. Ulisses tampou os ouvidos de todos os tripulantes com cera de abelhas, e pediu para ser amarrado ao mastro, para não se atirar nos braços da morte. Foi só assim que ele atravessou esses mares, já que não ouviram os seus gritos implorando para ser solto.

Assistindo o filme-exorcismo de Petra Costa, “Elena”, o que me veio foi exatamente a Jornada Noturna de Ulisses. O filme descreve a busca da diretora pela memória de sua irmã, que dá título ao filme. Sabemos pelas resenhas que Elena se suicidou há mais de duas décadas. O filme será sobre a busca da memória, de uma irmã que morreu quando a diretora tinha sete anos.

Petra descreve a fase negra de sua mãe, que passou toda a sua adolescência com a sensação profunda, aterradora, de falta de significado na vida. Chegou a cogitar, seriamente, por fim á própria vida se não encontrasse seu caminho. Tentou ser atriz mas não seguiu na profissão. Na Minas Gerais dos anos sessenta, ela encontrou o seu marido, casou e lutou contra o regime militar. Foi salva de ir pegar em armas no Araguaia com a gravidez de Elena. Petra nasceu quando Elena já era uma pré adolescente que sonhava com o Teatro e a Dança. O sonho que a sua mãe não conseguiu realizar (em terapia sabemos que é sempre muito perigoso aos filhos os sonhos não realizados de seus pais), Elena começou a perseguir. Entrou para um grupo, o Boi Voador, aos 17 anos. Depois de um tempo, foi tentar a sorte na América. A solidão e a distância de sua família a jogaram em sua primeira Depressão. E pensar que nessa época eu já carimbava as minhas primeiras prescrições psiquiátricas. Com a separação de seus pais, Elena volta a Nova Iorque com a sua mãe e sua irmã. Foi lá que a sensação de vazio e de falta de sentido foram se tornando mais devastadoras. Um dia, após uma briga feia com sua mãe, saiu pela noite da Big Apple jurando que daria cabo de sua vida. Voltou depois de algumas horas, passou pelo psiquiatra, tomou medicamentos. O colega achou que suas variações de humor fossem causadas pela Bipolaridade. Elena se suicidou com um coquetel de medicamentos e álcool. Não usou psicotrópicos para isso e pelo que entendi demorou para ser atendida. Não há nenhum Pronto Socorro do mundo que não receba em todo plantão uma meia dúzia de mocinhas que tomam meia dúzia de Tylenóis e vão para o PS com cara de suicidas. Será que eles interpretaram a chegada de Elena dessa forma? Não sei. Petra passou pela mesma jornada noturna quando estava às portas de escolher o mesmo caminho de sua irmã morta. Petra queria ser atriz e começou a ser tragada pelo mesmo silêncio que quase engoliu a sua mãe e dissolveu a sua irmã.

Petra descreve, em carne viva, como foi percebendo, tomando consciência, entrando e saindo da morte de sua irmã. Várias vezes, de diversas formas. O filme talvez seja uma operação alquímica de Separatio. Petra separa a sua trajetória das dores e das perdas de sua mãe e irmã. Nas cenas finais, ela sai de uma água uterina e respira. Profundamente. Ela respira um ar que é seu, uma angústia que é sua. Não tem mais que carregar as angústias de Elena, as mesmas que deram fim à sua vida.
Como na jornada de Ulisses, passamos por vários momentos em nossa vida em que ouvimos o canto doce das sereias, prometendo libertação e alívio de nossa maior angústia, que é o Devir. Pulamos do barco, por medo de não atravessar os estreitos nem ultrapassar as tempestades.

Não posso dizer que recomendo esse filme aos leitores desse blog. Só digo que é muito bom ver um filme quase caseiro (e nacional) chegar a esse nível de expressão, em tempos de “E aí, Comeu?”.’

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