Cinema e Psicanálise

Por Thaysa AudujasBlog Poética Desmedida – 24/9/2013

Assisti Elena já tem algum tempo. Conversa com um, indica pra outro e eu sempre estava falando sobre ele. Nas últimas semanas tive um trabalho pra fazer sobre psicanálise, o tema era livre. Então, por que não falar sobre esse filme tão profundo? Foi isso! Duas paixões – cinema e psicanálise. Eu e a Yasmin (minha adorada e sensível amiga) fizemos nossas considerações acerca do filme e de alguns conceitos da psicanálise muitíssimo interessantes àqueles que identificam com a temática. Espero que gostem!

O que é o cinema? Talvez essa questão possa parecer sem sentido. De que maneira nos relacionamos com o cinema e as outras artes? A estudiosa Mirian Tavares diz que o cinema deixa de ser, hoje, fornecedor de imagens que entretém. Na verdade, ele se converte numa imensa fonte referencial que alimenta os outros e se alimenta. “O cinema, neste instante, chega mesmo a ocupar o lugar do real na produção da iconografia contemporânea.”

É sabido que o cinema e a psicanálise surgem, praticamente ao mesmo tempo, e é importante pensar como essas duas áreas são capazes de se constituírem enquanto “ferramentas” para compreensão da psique humana.

Nietzsche, em O Nascimento da Tragédia, diz: “ver a si mesmo metamorfoseado diante de si e agir agora como se tivesse entrado em outro corpo, em outra pessoa”. Em nossa leitura, esse é o exercício feito por Petra Costa. O filme Elenase inicia com um sonho. Elena encontra-se em cima de um muro alto, enroscada em fios elétricos. A voz narrativa informa que é Petra quem está enroscada. Ela leva um choque e morre. Quem morre é Elena, com 20 anos no início da década de 1990. Nessa época, Petra ainda era uma criança, tinha apenas 7 anos. Elena passa a viver dentro de Petra “sinto você dentro de mim” [1], diz Petra. A irmã viva sente a irmã morta dentro dela.

A mãe das duas meninas sonhava em ser atriz. Sentia também vontade de morrer, mas aos 16 anos, encontrou o pai de suas filhas – um homem recém chegado dos EUA. Quando estão se preparando para combater a ditadura militar na Guerrilha do Araguaia, a mãe é impedida de viajar, está grávida de seis meses. “Elena, você salvou a nossa mãe”. Elena nasce e vive sua infância de maneira clandestina. Petra nasce na abertura política. Elena cresce e vai para Nova York ― inicia-se os sinais de depressão, a ausência de perspectiva para o futuro.

“Esse corpo tá doente. A vida o fez totalmente doente. Totalmente. Aquele eu descontrolado voltou… Eu ajo como se atuasse. Percebo tudo como numa tela de cinema…. Eu vou me degradar e escorrer por esse ralo.”

Segundo Freud (2011:63), a neurose aparece como o desfecho de uma luta entre o interesse da autopreservação e as exigências da libido, uma luta que o Eu vencera, mas ao custo de severo sofrimento e renúncia. Renúncia devido à luta entre o Superego e o Ego. “Um ser dentro de mim que me odeia”. A tensão que existe entre o Superego e o Ego é o que Sigmund Freud chama de “consciência de culpa”; ela se manifesta como necessidade de punição. No filme, torna-se claro essa relação com as cenas nas quais Petra, após a morte de Elena, nega a depressão; e reprimindo-se demasiadamente acaba demonstrando alguns sintomas nas formas de culpa, pesadelos e automutilação ao cortar os pulsos com 7 anos de idade.

Sabe-se que a civilização incita a luta e a disputa na atividade humana. O instinto agressivo deriva-se do instinto de morte, que está ao lado de Eros ― instinto de destruição e instinto de vida. Em conformidade com Freud, “(…) deveria haver, além do instinto para conservar a substância vivente e juntá-la em unidades cada vez maiores, um outro, a ele contrário, que busca dissolver essas unidades e conduzi-las ao estado primordial inorgânico. Ou seja, ao lado de Eros, um instinto de morte. Os fenômenos da vida se esclareceriam pela atuação conjunta ou antagônica dos dois. Mas não era fácil mostrar a atividade desse suposto instinto de morte. As manifestações de Eros eram suficientemente visíveis e ruidosas; era de supor que o instinto de morte trabalhasse silenciosamente no interior do ser vivo, para a dissolução deste, mas isso não constituía prova, é claro. Levava-nos mais longe da ideia de que uma parte do instinto se volta contra o mundo externo e depois vem à luz como instinto de agressão e destruição. Assim o próprio instinto seria obrigado ao serviço de Eros, na medida em que o vivente destruiria outras coisas, animadas e inanimadas, em vez de si próprio. Inversamente, a limitação dessa agressão voltada para fora teria de aumentar a autodestruição, aliás sempre existente.”

Essa é uma luta essencial à esfera da vida humana. A frase que constava na carta deixada por Elena antes do suicídio ― “This time I was not supposed to fight” ― elucida a desistência em relação à vida. Pois, ao não suportar as frustrações e rejeições que foi sujeitada, Elena perde a batalha e comete suicídio.

A irmã mais jovem, Petra, vai crescendo e durante boa parte de sua vida ouve sua mãe dizendo: “Você pode morar em qualquer lugar do mundo, menos em Nova York. Você pode escolher qualquer profissão, menos ser atriz”. Ela cresce e aos 18 anos decide ser atriz. Em busca de um material para participar de um workshop encontra um caderno, a letra de Elena. Encontra angústias que a trazem uma sensação de enorme identificação. Petra começa uma busca visando encontrar um espaço para Elena, um espaço fora de seu corpo. Ela precisava existir e se descobrir, na verdade. Trata-se de ser uma só e não duas. Petra precisa passar por uma espécie de “morte simbólica” para que ela pudesse se revelar. Numa dada altura do filme, Petra ressalta a fala de sua mãe “agora você está mais velha que Elena“. Nesse momento, Petra passa a ressignificar a morte de sua irmã, “o medo de que o caminho fosse o mesmo começou a se desfazer… Tomando forma e corpo, renascendo para morrer de novo”.

Petra diz que Elena é sua “memória inconsolável”, e é chegada a hora de morrer de novo. Parece-nos a única maneira de abrigar a irmã num outro lugar, não mais dentro de si. Elena é a Ofélia que se suicida na peça de Shakespeare, pensa Petra. E essa, é outra Ofélia. “Eu, com muito mais consciência para sentir sua morte outra vez, sinto um imenso prazer acompanhado da dor, me afogo em você, em Ofélias.” Nota-se que a perspectiva de Petra, em relação à morte de Elena, passa por uma ressignificação somente a partir do momento em que a torna consciente. Esse “prazer acompanhado da dor”, para Freud, estaria totalmente relacionado aos instintos de Eros e morte. Em suas palavras, diz: “essa luta é o conteúdo essencial da vida, e por isso a evolução cultural pode ser designada, brevemente, como a luta vital da espécie humana”.

Se, por um lado, Elena não suporta a luta; Petra consegue atribuir um novo sentido a essa batalha. “Enceno a nossa morte para encontrar ar, para poder viver… As dores viram água, viram memória. Desse modo, Petra ressignifica a morte pela última vez, através da sublimação ― processo de transformar impulsos (destrutivos e construtivos) inconscientes em consciência, que seja benéfico e duradouro para a humanidade ―, ao elaborar o filme.

Nos momentos finais do filme, Petra Costa diz:

“As memórias vão com o tempo, se desfazem, mais algumas encontram consolo, só algum alívio nas pequenas brechas da poesia. Você é minha memória inconsolável, feita de pedra e de sombra, e é dela que tudo nasce e dança”.

Essa passagem nos remete diretamente a Sigmund Freud quando aborda os meios paliativos para suportar a vida em sociedade.

“A vida, tal como nos coube, é muito difícil para nós, traz demasiadas dores, decepções, tarefas insolúveis. Para suportá-la, não podemos dispensar paliativos (…). Existem três desses recursos, talvez: poderosas diversões, que nos permitem fazer pouco de nossa miséria, gratificações substitutivas, que diminuem, e substâncias inebriantes, que nos tornam insensíveis a ela. (…) As gratificações substitutivas, tal como a arte as oferece, são ilusões face à realidade, nem por isso são menos eficazes psiquicamente, graças ao papel que tem a fantasia na vida mental.” (2011, pp. 18-19).

Observamos que Petra encontra na arte, a sublimação, como uma forma de alívio ao criar, produzir e atuar no filme. Dessa forma, a arte pode nos auxiliar a compreender o funcionamento psíquico. Freud, em A questão da análise leiga (1926), abordará a importância da artes (especificamente da literatura) para a formação psicanalítica. Entendemos, nesse texto, a obra de arte – mais do que um objeto a ser interpretado – como um sintoma do artista. Nota-se que o filme produzido por Petra Costa segue no caminho que nos permite “solicitar à criação artística as suas interpretações sobre a alma humana, que permitiriam ver, num jogo de espelhos, a própria face da construção psicanalítica” (KON, 2001, p. 95).

Em nossa ótica fica claro que Petra Costa transforma seu luto num trabalho sui generis, um filme cheio de poesia e sentimento. Petra realiza um diálogo com sua irmã morta de maneira comovente, com poderes curativos. Também é interessante ressaltar a importância da Arte, afinal, mediante a elaboração do filme, Petra, não só sublimou, como também atribuiu um novo sentido à morte de Elena; e, em decorrência desse processo, deu outro sentido para a própria vida ao se desvincular de Elena, no sentido egóico.

Não podemos nos esquecer também que o produto da sublimação constitui num bem cultural que ficará para a posteridade. Nas palavras de João Alexandre Barbosa (1994:24), em “Literatura nunca é apenas literatura” diz que essas “obras perenes, que permanecem, muitas vezes não permanecem pelos seus significados, mas porque nós, seus pósteros, podemos descobrir nelas relações de significantes que levam a outros significados.” Elena morre em vida, enquanto Petra nasce da morte.

[1]  Todas as vezes que aparecerem, nesse texto, citações sublinhadas estamos nos referindo as falas do filme Elena, de Petra Costa.

Referências
FREUD, S. (1914). A questão da análise leiga. In; Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, volume XIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 173-248.
FREUD, S.  O mal-estar na Civilização. Tradução de Paulo César de Souza. 1 ed. São Paulo: Penguin: Classics Companhia das Letras, 2011.
KON, N. M. De Poe a Freud – O Gato Preto. BARTUCCI, Giovanna (Org.). Psicanálise, literatura e estéticas de subjetivação. Rio de Janeiro; Imago Ed., 2001, 91-127.
NIETZSCHE, F. W. O Nascimento da Tragédia. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo; Companhia das Letras, 1992.
SAMPAIO, C. P. A incidência da literatura na interpretação psicanalítica. In; BARTUCCI, Giovanna (Org.). Psicanálise, arte e estéticas de subjetivação. Rio de Janeiro; Imago Ed., 2002. p. 153-175.

Índice

(346 artigos)