Arquivos de Memória

por: Ana Lucia Gondim Bastos, Psicóloga e psicanalista do Departamento Formação em Psicanálise do ISS – 4/7/2013

A primeira coisa que me ocorre depois de assistir à Elena é uma frase (de Isak Dinesen) que há muito tempo encontrei numa epigrafe da Condição Humana de Hannah Arendt, e que guardei no meu arquivo de memória. Diz que “Todas as mágoas são suportáveis quando fazemos delas uma história ou contamos uma história a respeito delas”. Elena, que um dia virou água ao ser tocada em sonho, ganhou narrativa. Virou uma história que foi sendo contada como quem recupera uma obra de arte: fruto de pesquisa acerca do passado, com cuidado e delicadeza no trato do arquivo e espaço para criação para quem a faz voltar a ser inteireza e não despedaçamento. Pedaços da vida de Elena ficaram aqui e ali: num a gravação em fita K7, em VHS, em fotos e em passagens que nunca deixaram de povoar a cabeça dos que com ela conviveram. A irmã caçula cresceu e resolveu juntar tudo, numa Elena dela, e num trabalho à maneira de umas das belas letras de Chico:

“Não se afobe, não
Que nada é pra já
O amor não tem pressa
Ele pode esperar em silêncio
Num fundo de armário
Na posta-restante
Milênios, milênios
No ar”

Baús e armários, assim como a memória familiar, foi mexida e remexida. Sim, diz Roudinesco, historiadora e psicanalista: o arquivo é condição para história, pois oferece um ordenamento da realidade. O arquivo não apenas registra-acumula-armazena coisas (memórias etc.), mas o faz de um modo determinado e assim produz também um ordenamento do e para o mundo, ordenando-nos simultaneamente, sendo a partir disso que podemos rever a realidade, interpretá-la e narrá-la produzindo sentidos para aquilo que já não é caos. Essa é a base da relação entre arquivo e história, sendo que, no fim das contas, a história acaba sendo uma exploração e a explanação do arquivo. Toda história é arquivo, mas o arquivo é apenas potencialmente história, enquanto no fundo do armário. A história também depende da possbilidade que o arquivo apresenta em sua medida e apresentação. O excesso, solapa a possibilidade de exploração e interpretação (pretende-se verdade absoluta e opca. Ao narrador resta repeti-lo numa descrição exata) e a escassez joga o narrador numa abstração particular de onde tudo pode até ser que tenha sido, mas perde ancoragem (exemplo disso é a importância dos trabalhos do projeto Fazendo história para crianças abrigadas , que, depois da adoção podem entrar em contato com como tudo começou). Voltando a falar de água, é como se o arquivo oferecesse margeamento para o fluxo do rio que é uma narrativa. O excesso engessa, a escassez faz a água perder a força e empoçar.

Os arquivos são as pistas para construção de novos sentidos para uma história. Petra já é de uma geração cujos registros fotográficos não são raros, tampouco se restringiam a momentos festivos ou eram executados, apenas, por profissionais contratados. A possibilidade de reter e armazenar imagens, sons ou movimentos, já era algo que fazia parte do cotidiano das famílias de classe média (o que um dia foi recebido com espanto e encanto nas salas de cinema e no registro dos eventos dos espaços públicos, invadira o infinito particular das famílias). Assim, Petra pode se ver bebê, pode ver as pessoas de seu cotidiano com ela se relacionando: conhece seu olhar, seus gestos e suas gracinhas, já não contando apenas com relatos orais dos familiares ou outras pessoas mais velhas que acompanharam seu crescimento (esses são outras pistas a serem juntadas às imagens). É esse arquivo que Petra vai recortando e colando gestos , sons e imagens num lugar onde tudo isso se integra muito bem: no cinema! Lugar onde sua Elena sempre quis estar.

Aqui me lembro de um vídeo, que vem sendo veiculado pelo youtube, que traz vários atores dizendo que querem conhecer Elena. Os que a tiveram em passagens em suas vidas, falam do seu fascínio, de sua liberdade e de sua capacidade de romper com sempre-igual das coisas. Todos querem encontrar Elena, apesar de alguns até chegarem a se questionar se realmente querem. Esses últimos talvez pela consciência de que terão que seguir os passos de Petra: se aventurar na cidade proibida, traçar caminhos tortuosos, chegar perto de sua dor e encontrar seu próprio destino/sentido. Petra cresceu ouvindo: “você pode morar em qualquer lugar menos em NY. Pode escolher qualquer profissão, menos ser atriz”.

Mas, encontrar Elena onde ela nunca deixou de estar (a exemplo de Doroti do Mágico de Oz) permite que possamos, enfim, protagonizar uma história. Faço votos que cada um daqueles atores possa mesmo se aventurar na busca de suas Elenas, assim como cada um de nós, que hoje nos emocionamos com a busca que Petra, generosamente, conosco compartilha e que, inevitavelmente, nos faz questionar se queremos conhecer nossa Elena. Se a resposta for positiva, o caminho pode ser longo, mas, certamente, enriquecedor.

Eliane Brum (jornalista que chegamos a convidar para estar aqui hoje conosco, pela belíssima leitura sobre o tornar-se mulher que o filme também traz), certa feita escreveu sobre experiência de uma criança, de um pouco menos de 2 anos, que na presença de uma menina de perna quebrada, ficou totalmente tomada pelo susto da percepção de que as pessoas quebram. Pois é, as pessoas quebram e só a possibilidade de contar histórias faz com que seja suportável vivermos e convivermos com os cacos (com os nossos e com os dos outros). Do mesmo modo, para se contar uma boa história há de se ter entrado em contato com essa dura realidade da condição humana: somos quebrados e vamos “tocar” a vida assim, contando histórias uns para os outros. Histórias que, de forma mais ou menos explicita, mais ou menos angustiada, mais ou menos organizada sempre falarão de nossas Elenas e as farão permanecer vivas dentro e fora da gente.

Lembrei de que certa feita Rubem Alves disse que para ele contar histórias tinha a mesma função de que as pérolas para as ostras: as ostras na sua vidinha de ostra,muitas vezes não podem evitar que pequeninos grãos de areia entrem em suas conchas e fiquem machucando, doendo. Então, passam a produzir um perola em seu entorno para poder continuar existindo com ele dentro dela. Buscar Elena, certamente, é um trabalho de fabricação de pérola que cada um de nós terá que descobrir seus próprios processos!

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