Seja bem-vinda, Elena

Eduardo Escorel - Revista Piauí - 6/5/2013

Um filme muito lírico

Rubens Ewald Filho - Portal Pepper – 29/5/2013

Vamos flutuar

Jordan M. Smith - IonCinema – 1/5/2013

ELENA: ALÍVIO NAS PEQUENAS BRECHAS POÉTICAS

Por Blog Poético Diário – 15/11/2014

elenasunsetVocês já devem ter ouvido falar em Elena Andrade, não é mesmo? Se nunca ouviram falar, irei apresentar-lhes neste momento.

Conheci Elena já faz um tempinho, para ser mais precisa, em dezembro de 2013. Quem me apresentou a mesma foi um amigo meu que mora bem distante. Procurei alguns vídeos que estivessem ligado aos conceitos que ele me falou. O primeiro vídeo que assisti foi de um ator bem conhecido no teatro nacional. A forma com que Wagner Moura citou Elena, me deixou presa a uma “curiosidade” imensa. Passado alguns dias, resolvi assistir ao documentário. E o resultado não poderia ser outro: Eu me encontrei naquela criança que queria ser atriz. Eu me encontrei em toda aquela poesia que ela citava e comecei a desejar bailar com a lua! (risos).

Quando perdemos um ente querido e estamos maduros, tal perda nos causa um imenso vazio que algumas vezes não pode ser preenchido. Imagine quando perdemos alguém que amamos ainda quando crianças? E se a morte for causada por um desespero tão profundo que levou tal pessoa a cometer suicídio? É certo que sabemos que cada indivíduo lida com essa situação de uma forma diferente. Muitas vezes buscam uma crença religiosa como uma forma de reconforto. Mas esse não é o caso de Petra Costa. O documentário da mesma não tem como interesse abordar as práticas religiosas, uma vez que Petra não acreditava em Deus na infância.

A produção do documentário foi elaborada a partir dos arquivos que Petra guardou, como por exemplo diários e gravações de voz da própria Elena, irmã de Petra Costa que suicidou-se em 1990 no auge da depressão. A mãe de ambas se encontra presente no filme. Para isso, a irmã de Elena ora observa ora se faz de narradora.

O trecho abaixo fora extraído do site Cinema Detalhado:
Relatado com afeto através da suave e doce voz de Petra Costa, Elena não é somente um documento pessoal, um exercício de acerto de contas. Mesmo a trama abordando problemáticas pessoais de sua corajosa realizadora, o virtuoso apanhado demonstra propriedade para transcender suas limitações quanto conteúdo fechado e se tornar de caráter universal. É quando o filme cresce, se apropria da nossa memória afetiva. A dor e tristeza compartilhada encontra fácil identificação. Anseios, mágoas e pesares são palpáveis. O regozijo se faz necessário. E aos poucos ele vai surgindo, embalado por imagens encantadoras, como o inspirador balé aquático – “A dor vira água”, afirma Petra Costa. Essa emoção que flui naturalmente, ressoa com força no público. E da forma mais sincera possível. Ao ponto de uma simples câmera simulando os movimentos da lua – “Tó dançando com a lua”, diz Elena – ser suficiente para extrair sentimentos adormecidos e nos remeter as coisas simples que realmente fazem diferença na nossa existência.

A figura arquetípica do casal: aplicando Barthes a Olhos de Ressaca, de Petra Costa

Texto de Sean McPherson*

Tradução: Elidia Novaes

vera and gabriel

Olhos de Ressaca é um documentário da jovem diretora brasileira Petra Costa que, em apenas 20 minutos, consegue retratar toda uma história de amor profundo entre dois idosos. Os amantes, embora não seja revelado ao longo do filme, são Vera e Gabriel, avós maternos de Costa. Mesmo que ela não exponha sua ligação íntima com os sujeitos, nesse sentido, seu trabalho é muito parecido com o livro A Câmara Clara de Roland Barthes. Barthes, especialmente na segunda metade de sua obra, permite que o leitor invada o mundo particular de sua família, principalmente quando detalha sua tristeza pela morte da mãe. As teorias que Barthes desenvolve sobre a fotografia também podem ser aplicadas ao trabalho de Costa, apesar de Barthes estar permanentemente tentando distinguir fotografia e cinema. Sendo um documentário, Olhos de Ressaca não é “ficção”, e algumas de suas características se prestam a uma análise fotográfica.

Na verdade, fazendo Olhos de Ressaca, Costa parece ter combinado o poder da fotografia e o do cinema. Barthes vê o cinema como uma forma de arte que tem o poder de emocionar, de nos proporcionar uma catarse que a fotografia não consegue. Barthes sugere que, por essa razão, ele não considera a fotografia como arte, mas um mero fenômeno da loucura, perigoso e mágico. Sendo ela uma obra de arte ou não, Barthes diz que os melhores fotógrafos são os mitólogos, ou seja, aqueles que fazem retratos (no sentido mais estrito da palavra) dos seres humanos icônicos. Se um fotógrafo conseguir elevar o assunto a um nível arquetípico, ele terá feito o que a maioria dos fotógrafos não é capaz de fazer: dar vida ao sujeito em vez de trazer a morte, captar sua “sombra luminosa”, sua essência. Com Olhos de Ressaca, Costa criou um retrato (e, portanto, também um mito) de seus avós que faz exatamente isso; ela os filma de modo a fazer com que eles acabem simbolizando a figura arquetípica do casal idoso de amantes. Assim, ela nos fornece os aspectos da foto – seu punctum (quase), sua melancolia e seu mito – e ela os combina com o poder catártico do cinema para produzir uma obra de arte verdadeiramente brilhante.

O retrato

verayoungUma das fotos incluídas na minha cópia de A Câmara Clara é um retrato feito por Richard Avedon em 1963, intitulado “William Casby, nascido escravo”. Barthes utiliza esta imagem para tratar do poder do retrato fotográfico em transformar o assunto em uma espécie de máscara que, em última análise, representa um grupo inteiro de pessoas. Em outras palavras, Barthes está refletindo sobre a forma como alguns indivíduos podem se tornar figuras arquetípicas. Pois William Casby não é mais exclusivamente ele mesmo, mas também uma representação do escravo (libertado). Barthes explana desta forma:

Como cada foto é contingente (e, portanto, fora do significado), a Fotografia não pode significar (visar uma generalidade), exceto na medida em que assumir uma máscara. É esta palavra que Calvino usa corretamente para designar o que transforma uma face no produto de uma sociedade e de sua história. Como no retrato de William Casby, de autoria de Avedon: a essência da escravidão é aqui exposta: a máscara é o sentido, na medida em que é absolutamente puro (como era no antigo teatro). É por isso que os grandes retratistas são grandes mitólogos: Nadar (a burguesia francesa), Sander (os alemães da Alemanha pré-nazista), Avedon (“crosta superior” de Nova Iorque).

Se tentarmos descrever o que há na face de Casby que nos emociona, não demoramos muito a perceber que são seus olhos que falam diretamente para a câmera. Percebendo isso, Barthes tenta fazer uma distinção entre a fotografia e o cinema, “[…] a Fotografia tem esse poder – que está perdendo cada vez mais, sendo a pose frontal na maioria das vezes considerada arcaica nos dias de hoje – de me olhar diretamente nos olhos (aqui, além disso, há uma outra diferença: no filme, ninguém jamais olha para mim: é pelo proibido – pela Ficção)”. No documentário de Costa, no entanto, há inúmeros exemplos de cenas onde os amantes encaram a lente, desafiadoramente lembrando-nos de sua existência real. No segundo minuto do filme, por exemplo, vemos os “olhos de ressaca” da esposa, Vera, olhando para nós, enquanto seu marido Gabriel recita um trecho do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis. Vale a pena reproduzir aqui a citação integral:

Trazia não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saia delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. 

A próxima cena mostra o sol e sua sombra luminosa alongando-se sobre o mar, e com isso, não demoramos a vislumbrar a essência de Vera, que tanto atraiu Gabriel quando eles ainda eram adolescentes. Também começamos a entender Gabriel como um homem culto, sonhador e romântico. Além disso, deste ponto no início do filme, já foi estabelecido e reestabelecido o tema central: o amor (mais especificamente, o amor que dura uma vida inteira). Portanto, além de ser um retrato no sentido mais amplo e mais biográfico da palavra (com o uso de citações, vozes e múltiplas tomadas), Olhos de Ressaca também mantém traços do antigo gênero do retrato tradicional.

A melancolia

melancoliaCosta usa a melancolia da fotografia para realçar a beleza e eficácia sentimental/ nostálgica/ emocional de seu filme. Em seu livro, Barthes inventa a ideia do punctum de uma foto, aquilo que nos dá uma picada emocional, a coisa inexplicável que nos faz perder a indiferença em face de uma foto e começar a amá-la. Ele diz que, muitas vezes, o punctum é um detalhe em uma foto, particularmente uma boa foto, ou a mensagem temporária que transmite. Eu diria que, em Olhos de Ressaca, o tempo, sem dúvida, nos “dilacera” (para usar uma palavra favorita de Barthes). Através de tomadas em primeiríssimo plano, notamos a extrema velhice do casal, e essas tomadas se justapõem a fotos e sequências mostrando vários jovens de uma forma que enfatiza a passagem do tempo. Assim vemos que, se eles não morreram, isso deve acontecer em breve. Por isso, o punctum de Olhos de Ressaca seria temporário, caso seja verídico.

No entanto, de acordo com Barthes, o movimento quadro-a-quadro que acontece na mídia cinematográfica impede cada imagem de nos danificar; isso faz com que não possa haver um punctum. De fato, há um alívio nessa mudança constante de imagens estáticas e tomadas (embora a sombra da melancolia da foto na arte do cinema ainda permaneça). Quando um diretor edita seu material bruto, pode corrigir as tomadas até um ponto culminante e uma catarse subsequente, algo que não se pode alcançar com uma única imagem congelada. Assim, mesmo em um filme de ficção, pode-se usar a melancolia da fotografia para influenciar os sentimentos do público e chegar a um crescendo artístico. Sendo o cinema uma arte derivada da fotografia, a melancolia sempre estará presente. Barthes explica isso melhor quando analisa uma foto de sua mãe que ele chama de Fotografia do Jardim de Inverno. Quando ele escreveu o livro, sua mãe já tinha morrido, e a Fotografia do Jardim de Inverno é uma imagem que foi feita quando ela ainda era um bebê. Por esta razão, a foto é comovente para Barthes de um modo particularmente profundo, e ele pondera por um momento sobre a falta de alívio dessa foto em comparação com o que obtemos de um filme:

Aqui, novamente a Fotografia do Jardim de Inverno. Eu estou sozinho com ela, em frente a ela. O círculo está fechado, não há como escapar. Sofro, imóvel. Cruel, deficiência estéril: eu não posso transformar minha dor, eu não posso deixar meu olhar à deriva; nenhuma cultura vai me ajudar a expressar o sofrimento que estou experimentando, inteiramente no nível da finitude da imagem (é por isso que, apesar de seus códigos, eu não posso consigo ler uma fotografia): a Fotografia – minha Fotografia – é sem cultura: quando é doloroso, nada nela pode transformar a dor em luto.

Na página anterior, Barthes afirmava explicitamente o que ele apenas sugere aqui sobre a diferença que vê entre a fotografia e o cinema:

A imagem fotográfica é cheia, abarrotada: não há espaço, nada pode ser adicionado a ela. No cinema, cuja matéria-prima é fotográfica, no entanto, a imagem não tem essa completude (o que é uma sorte para o cinema). Por quê? Porque a fotografia tirada em fluxo, é impelida, incessantemente atraída para outros pontos de vista; no cinema, sem dúvida, há sempre um referencial fotográfico, mas esse referencial muda, não faz nenhuma alegação em favor de sua realidade, não protesta contra sua existência anterior; ele não se apega a mim: ele não é um espectro .

Porque a mídia cinematográfica, até certo ponto, transcende o aspecto frustrante e perturbador da fotografia, eu quase concordo com o argumento de Sophia Beal em seu ensaio dedicado ao retrato de corpos no documentário de Costa. Beal diz que os close-ups acabam revelando os corpos dos idosos sem tentar chocar-nos com a perspectiva de sua (e nossa) morte iminente. Na verdade, ela atribui o sucesso do filme ao que ela vê como uma celebração do amor entre pessoas mais velhas: “As representações de intimidade física entre pessoas jovens sadias sempre dominaram as artes, mas o desejo de finalmente ver a sensualidade dos idosos abordada atenciosa e criativamente no cinema pode explicar o sucesso que Olhos de Ressaca teve entre os críticos” . Gostaria de dizer, no entanto, que a pele dos idosos age inevitavelmente como um lembrete da morte, independente de quanto esforço façamos para pensar sobre a beleza de uma maneira nova. Barthes atribuiria a pouca perturbação às técnicas do cinema: movimento, mudanças de tomadas, a música que acompanha as sequências e a trajetória do filme até um final que nos comove em muitos aspectos, como num romance. Portanto, Costa é capaz de 1) mostrar-nos tanta morte sem frustrar-nos por completo e 2) jogar com a melancolia, usá-la como uma ferramenta que a ajude a cumprir a meta de nos comover e de construir um retrato realista/ abrangente do amor entre Vera e Gabriel, que também inclui a escuridão, o dissabor.

A figura arquetípica do casal

casal1Além de criar uma catarse, Costa tem outro objetivo: ela quer transformar seus sujeitos em figuras arquetípicas. Mais especificamente, ela quer desenvolver um mito sobre o poder do amor dando sentido à vida e superando o medo da morte. Devo também definir melhor o tipo de amor, um amor romântico muito longevo, mais e mais profundo a cada dia. A primeira tomada já sugere a proximidade entre Vera e Gabriel como resultado de muitos anos vividos ​​juntos: veem-se duas sombras cujos donos caminham de um modo que revela sua idade avançada, uma das sombras obviamente pertencente a um homem e a outra a uma mulher. Estas sombras desaparecem depois de alguns passos na sombra grande de uma árvore. Em paralelo, uma tomada final sugere que os amantes pretendem seguir juntos até o túmulo: Vera e Gabriel sopram umas velas, saindo da penumbra para a escuridão total.

Estas tomadas cultivam um sentimento de profundo amor que talvez mereça o título de mito, embora não eleve necessariamente os amantes à condição de símbolos universais. Costa faz isso 1) ao manter o anonimato e uma onda esotérica afastada de seu documentário, e 2) ao dedicar parte do documentário ao legado dos amantes: sua família. Com relação à primeira técnica, podemos listar muitas dados que Costa não fornece ou pelo menos não ficam muito claros: por exemplo, os nomes dos sujeitos, Vera e Gabriel, não são informados até os créditos finais. Também não se sabe, como mencionei antes, que esses dois sujeitos são de fato os avós maternos da diretora. Em termos de espaço, nunca se sabe ao certo onde os amantes estão; só descobri lendo o ensaio de Beal, que revela que muitas das cenas se passam em Belo Horizonte, onde se encontraram pela primeira vez, adolescentes (4). Entre as imagens do mar e de uma fazenda rural (cujo nome é visto mas não nos remete nem ao menos a um estado brasileiro específico), não seria possível saber esses dados apenas assistindo ao filme. Finalmente, quando Costa começa a entremear algumas fotos e filmagens do passado do casal, não nos deixando completamente certos quanto ao número de filhos que tiveram juntos (na maior parte do tempo, parece haver três, mas pelo menos uma vez uma quarta “filha” aparece) ou, entre outras coisas, quanto tempo eles viveram na fazenda. Em geral, as informações que poderiam nos ajudar a compreender melhor algumas das imagens, sons e vozes não está visível, o que tornaria possível interpretar os amantes como um símbolo de todos os namorados de infância que estão juntos pela vida toda. De acordo com Beal, “o fato de essa informação ser omitida do filme aumenta a qualidade onírica que a diretora queria transmitir (Costa, entrevistada por e- mail)”, isto é, a falta de tal informação adiciona uma camada de possível interpretação simbólica dos sujeitos que só se pode ter no mundo dos sonhos, e não na realidade.

O legado da família dos amantes também ajuda a convertê-los em figuras lendárias. Imediatamente após mostrar uma sequência de que só se pode supor ter sido o casamento de Vera e Gabriel, o filme retorna ao presente com uma tomada dos recém-casados, agora velhos novamente, dançando. O take capta o reflexo deles contra a janela e é possível ver as folhas de uma árvore pelo vidro. A imagem deles dançando lentamente, sobreposta à imagem da árvore, nos faz pensar em fertilidade. Vera fala das várias vezes em que esteve grávida, e muitas fotos e sequências são dedicadas a ela como epítome da figura maternal. Além disso, as tomadas dos amantes caminhando pelo campo onde eles começaram sua nova família evocam uma nostalgia maternal, “uma habitabilidade fantasmática”, como diria Barthes. Finalmente, ao incluir a voz de Vera falando da morte de sua mãe, Costa simultaneamente: 1) estende ainda mais sua linhagem familiar até o passado distante e 2) por acaso, ela vincula Olhos de Ressaca ainda mais a A Câmera Clara, um livro cujo tema central consiste no trauma pela perda da mãe. Ao destacar a fertilidade de Vera, sua fertilidade como a mãe e também mencionar seu passado, o legado familiar estabelecido pelos amantes torna-se um teste a seu prodígio, sua grandeza agora de proporções míticas.

O filme termina com os amantes contando que já não necessitam mais da fala para se comunicar; basta olhar-se nos olhos e sentir o toque do outro para saber como estão e o que pensam. No final de Olhos de Ressaca, Costa conseguiu convencer-nos dos poderes quase sobrenaturais deste casal, o casal que agora aparece não só nesta obra de arte, mas também em muitas outras, como um símbolo eterno. Em um intermezzo intitulado “Knee Play 5”, da ópera Einstein on the Beach, por exemplo, ouvem-se versos que parecem descrever os amantes em Olhos de Ressaca (uma foto de Robert Mapplethorpe enfocando os criadores da ópera, o dramaturgo Robert Wilson e o compositor Philip Glass também aparece em A Câmara Clara):

Dois amantes sentados em um banco de parque, com seus corpos se tocando, de mãos dadas ao luar. Houve um silêncio entre eles. Tão profundo era seu amor que eles não precisavam de palavras para expressá-lo. E assim eles se sentaram em silêncio, em um banco de parque, com seus corpos se tocando, de mãos dadas ao luar.

Se você quiser assistir ao filme, eis o link em Vimeo: http://vimeo.com/15069615

Obras Citadas

Barthes, Roland. A Câmara Clara. Nova Iorque: Hill and Wang, 1980.

Beal, Sophia. “O jeito dos corpos idosos.” (rascunho, não publicado até o momento)

Costa, Petra. Dir. Olhos de Ressaca. DVD. 2009.

Glass, Philip. “Knee Play 5”. Einstein on the Beach. CD. Sony Classical, 1986.

Machado de Assis. Dom Casmurro. São Paulo: Editora Martin Claret, 2002.

*Sean McPherson é americano, estudou na Tulane University, em Nova Orleans, nos Estados Unidos. Em seu blog, gosta de escrever sobre cinema, música e fotografia.

Elena – O filme do Brasil

Por Gilmar Carneiro – 11/10/2014

Nem parece que é brasileiro

ny4No final da semana passada assistimos ao filme ELENA, da diretora Petra Costa. Nem parece um filme brasileiro, embora seja todo ele falando do Brasil de ontem e de hoje. Um filme com músicas lindas, fotografias de primeira e depoimentos comoventes.

Não sabia nada sobre o filme, pegamos na locadora a pedido de minha esposa e fomos vendo devagarinho, isto é, sem grandes expectativas. Aos poucos fomos ficando hipnotizados, como se estivéssemos vendo algo como Morangos Silvestres, de Bergman.

Um filme envolvente e que tem muito a ver com o Brasil dos últimos cinquenta anos, tem a ver com nossa geração que estamos nos sessenta anos. E, só depois de ver ao filme e sair perguntando aos amigos sobre àquela história, ficamos sabendo que, mesmo distante, temos um pouco a ver com aquele tempo. Mais emoções ainda…

E porque o filme nem parece que é brasileiro?

Cena_Elena_atriz_de verdade_maquiagemPorque a maioria dos filmes atuais têm cara de Rede Globo, com os autores globais, a forma de falar global e o padrão globo de produção. Mesmo os filmes antigos, antes do domínio da Globo, eram filmes do Cinema Novo, de autoafirmação nacionalista tipo Deus e o Diabo na Terra do Sol, ou O Cangaceiro, ou ainda O Pagador de Promessa e Macunaíma. Todos estes tem o jeitão nacionalista.

Este filme é brasileiro, mas tem padrão universal

homecanadaÉ mais para o mundo moderno globalizado, não pela Globo, mas pelos valores do pós-Guerra Fria. O mundo sem fronteiras e cheio de crises existenciais. Um mundo sem partidos e sem governos legítimos. Apenas legalizados. Um mundo onde a Terra é nossa Pátria!

Descobri hoje que este filme foi produzido em 2012. Como fiquei sabendo somente agora? Como não vi nada antes? E olha que eu leio vários jornais e acompanho mais os cadernos de cultura do que os cadernos de política.

Mas, com certeza, é um dos melhores filmes brasileiros que já vi. E acho que ainda vai dar muito o que falar. Talvez, se os brasileiros assistem mais este filme, acharíamos com mais facilidade o Brasil que a gente está querendo construir. Como também entenderia um pouco mais das nossas angústias atuais.

As mulheres brasileiras, como as mulheres de Atenas

opcao_25I3026 copyDeram uma grande contribuição à nossa história e à nossa atualidade. Que surjam mais Elenas e Petras por este país tão grande e contraditório. E que possamos recuperar as histórias sem precisar ser revanchistas nem vingativos, simplesmente para conhecer as verdades e avançarmos no presente com qualidade, diversidade e mais tolerância. O mundo não precisa ser maniqueísta, dualista.

O mundo e a vida são plurais.

Em ELENA e O Som Ao Redor, memórias de um passado político

Força e Significados: perseguições políticas em dois filmes brasileiros recentes

O Som Ao Redor (2012)

Kleber Mendonça Filho

ELENA (2012)

Petra Costa

Por Kristi M. Wilson*

Publicado originalmente pelo Latin American Perspectives

Tradução: Lucas Hackradt

Infância na clandestinidade: Elena era a mascote da Universidade Estadual de Londrina (UEL), durante a campanha eleitoral da chapa Poeira para o DCE-UEL

Infância na clandestinidade: Elena era a mascote da Universidade Estadual de Londrina, durante a campanha eleitoral da chapa Poeira para o DCE-UEL

Segundo Avery Gordon, perseguições sociais podem ocorrer de diferentes maneiras – desde o desaparecimento de artefatos pessoais à ruína de material de arquivo ou a pessoas vivendo vidas inteiras com constante medo de repressão ou desapropriação. Dois filmes brasileiros de 2012, O Som Ao Redor (dirigido por Kleber Mendonça Filho), e ELENA (dirigido por Petra Costa), exploram essa ideia das memórias e fantasmas do passado político. Esses filmes representam a colisão entre a força do passado e seu significado nos dias presentes através de uma série de observações históricas e fatos recorrentes no Brasil que impactam as relações de raça, gênero e classe no país e falam sobre o abismo criado pela desigualdade social que persiste através dos tempos. O Som Ao Redor foi exibido no Latin American Studies Association film festival de 2013

O Som Ao Redor explora a violência atual e histórica na região metropolitana de Recife, uma área altamente urbanizada atualmente, mas cujo passado esconde uma história dolorosa de escravidão e barões do açúcar. ELENA é um documentário poético sobre a perda, as memórias e o exilo (tanto de seu país quanto de si próprio). Nascida durante a época de perseguição militar, Petra usa material de seu acervo pessoal, como diários, vídeos caseiros e gravações de voz para conjurar a memória inconsolável do suicídio de sua irmã em Nova York.

Aludindo ao próprio título, O Som Ao Redor começa com uma tela preta e vários sons ambientes (carros, pássaros, o vento, passos) seguidos por uma séria de fotografias em preto e branco de um canavial. As fotos de crianças e trabalhadores do campo agrícola dão espaço para um cenário urbano atual em que um jovem garoto pedala em sua bicicleta dentro de um estacionamento de um prédio de luxo e é seguido por uma garota de patins. As fotografias das crianças no canavial são substituídas por crianças de hoje junto a suas babás em um playground. O som de metal sendo soldado por um trabalhador atrai a atenção dessas crianças. Já em outra cena, uma mulher dentro de seu apartamento não consegue dormir por causa do cachorro de seu vizinho. Assim, ela embrulha um pedaço de carne e o joga pela janela, esperançosa de que o cão pare de latir. Os protagonistas do filme são uma família rica (cujo patriarca, Seu Francisco, é dono de metade das propriedades na cidade), seus vizinhos e um grupo de seguranças. A riqueza de Seu Francisco vem do canavial mostrado no início do filme e a herança mantém-se na família através dos incontáveis arranha-céus que se levantam em Recife.

Cena do filme O Som Ao Redor, de Kleber Mendonça Filho

Cena do filme O Som Ao Redor, de Kleber Mendonça Filho

João, herdeiro de Francisco, é um jovem que acaba de voltar de uma temporada de sete anos na Alemanha. Ele é a pessoa mais simpática da família e detesta seu trabalho como gerente de uma corretora (que aluga apartamentos com sistemas de segurança sofisticados). Ele rapidamente se apaixona por uma moça chamada Sofia, que cresceu em uma das casas de Seu Francisco. Clodoaldo Pereira dos Anjos, um misterioso segurança, faz o paralelo com João como um protagonista mais sinistro. Ele e sua equipe de seguranças privados parecem surgir do nada, sempre no momento oportuno, para livrar Recife de seus crimes hediondos ao garantir proteção e “paz de espírito”. Clodoaldo faz a patrulha das ruas em troca de pequenas “colaborações financeiras” e das chaves de diferentes casas e apartamentos. Com isso, ele se aproveita para usar os espaços como locais para seus encontros sexuais com as empregadas domésticas de seus clientes – algo que constitui o maior medo da classe média urbana ao demosntrar o quão difusas são as divisas entre as classes.

O Som Ao Redor é a história da crescente onda e ênfase nas questões de “segurança” em muitas cidades latino-americanas, principalmente da preocupação com crime, insegurança e crescente desigualdade social, algo em parte herdado pela manutenção das riquezas através de gerações. As classes ricas e pobres convivem lado a lado em muitas cidades do continente, ao passo que casas tradicionais e mais simples são destruídas para dar lugar a prédios gigantescos. É notável a rápida expansão urbana em cidades como Buenos Aires, Lima e Cidade do México. Ao ambientar o filme em Recife, Mendonça Filho permite explorar as relações entre a classe alta contemporânea, a exploração colonial, o patriarcalismo e a grilagem de terras.

A trilha do filme consiste de barulhos como o de insetos, de campainhas, televisões, passos e do tráfego. A tensão é construída através de diferentes níveis de volume e velocidades desses sons, assim como através de pequenos atos de vingança social que se conectam ao tema central do filme – segurança – e impulsionam a narrativa em direção a revelações sobre as sementes da violência e do ressentimento. Uma dona de casa frustrada, por exemplo, tenta envenenar o cachorro de seu vizinho; um flanelinha risca o Audi de uma mulher rica que se recusa a lhe dar atenção; um membro de uma das famílias ricas da cidade passa seu tempo quebrando as janelas de vários carros… O tópico da criminalidade começa a ficar mais obscuro quando, na terceira parte do filme, as histórias da família começam a se misturar.

Água em sangue: memórias da escravidão

Água em sangue: memórias da escravidão

Os pesadelos formam uma importante parte da narrativa do filme sobre medos e insegurança. Em uma elaborada sequência, João leva Sofia para visitar o canavial de seu pai. Eles visitam a Casa Grande, o moinho abandonado e ruínas do que fora um cinema. Eles passam por um local onde diversas crianças, que ainda vivem no canavial, tomam banho em uma cachoeira. João acorda – não passara de um sonho! – quando as águas da cachoeira se tornam sangue, evocando memórias dos tempos de escravidão. Em outra cena, uma jovem sonha que sua casa está sendo invadida por centenas de pobres anônimos, que pulam o muro de seu quintal no meio da noite. Os pesadelos tornam-se realidade no final do filme quando o legado de violência colonial se torna visível. O irmão de Clodoaldo aparece no final do filme convertendo a estrutura narrativa da história, que até então parecia solta, em uma história de vingança de proporções odisséicas.

O documentário de Petra Costa, ELENA, também lembra uma tragédia grega ao enfatizar o drama intergeracional. Close-ups de girinos na água misturados à trilha por The Shirelles “This is Dedicated to the One I Love” assemelham-se a filmes de David Lynch e já mostram ao espectador que esse não será um documentário padrão ao qual está acostumado. O filme de Petra foi comparado a outros documentários reflexivos, como Capturing the Friedmans (2003) de Andrew Jarecki e Tarnation (2003) de Jonathan Caouette, em que os protagonistas crescem em ambientes cheios de câmeras, filmes caseiros e gravações pessoais. O documentário Los Rubios (2003), de Albertina Carri também salta à memória, uma vez que ambas são filhas de ativistas durante as ditaduras militares na Argentina e no Brasil e ambos os filmes são sobre algo que Elizabeth Jenin chama de “campos minados da memória”. E ainda assim há algo de extremamente poético e ilógico na decisão de Petra de voltar a Nova York (lugar de suicídio de sua irmã) não para lembrar-se de Elena, mas para esquecer-se dela. Petra e Lynch escolhem caminhos que vão à profundidade máxima do abismo emocional que é a perda; caminhos esses que não necessariamente levam a resoluções pessoais positivas no final. As memórias inconsoláveis são o que ficam para que o público reflita sobre a meditação que costa faz sobre política, estar exilada e identidade.

Em Nova York, Petra busca por Elena

Em Nova York, Petra busca por Elena

O exílio forçado não é parte do tema central desse filme, ainda que a diretora tenha nascido em uma época em que ativistas desapareciam no Brasil e sua família tinha que viver em esconderijos. O exílio é mais um estado de espírito e da própria existência em Elena. Elena, que abandona uma carreira relativamente segura e de sucesso no Brasil para seguir seu sonho de ser atriz famosa em Nova York – e sua mãe e irmã que a seguem quando seu comportamento começa a ser percebido como autodestrutivo. A busca pela arte e pela beleza transforma-se em tragédia quando Elena não consegue lidar com os sentimentos de perda e desapontamento em sua vida. Petra vaga pela cidade tentando reconectar-se com as memórias de sua irmã enquanto que fragmentos dos diários de Elena narram seus desafios artísticos em Nova York.

As cenas mais fortes do filme recontam as últimas horas de Elena através dos olhos de sua mãe. O filme é a trágica história de uma jovem mulher que não consegue atingir o sonho americano. É também uma reflexão sobre o suicídio. Finalmente, é também um conto sobre tristeza e o vazio que nasce com a ditadura militar e é passado de geração para geração. Outras coisas também são passadas de mãe pra filha, como a vontade de Petra de estudar teatro e fazer filmes. Para a diretora que, segundo todos é fisicamente igual à irmã, crescer junto a sua irmã é fonte de medo. No momento em que Petra torna-se mais velha que sua irmã ao morrer, um sentimento de alívio parece pairar sobre a mãe e ela própria.

Tanto O Som Ao Redor quanto ELENA exploram de maneira artística as diferentes formas como o Brasil tornou-se desconhecido – através da obsessão com a segurança e conflitos de classe em Recife; e através das memórias inconsoláveis de uma família que só podem ser reconstruídas no âmbito do exílio.

* Kristi M. Wilson é professora na Soka University of America – Aliso Viejo, Califórnia – Estados Unidos

Elena e Lucio Magri. Tão distantes e tão perto

Por Daniel Costa – Blog da Boitempo – 16/9/2014

elena_luciomagriProvavelmente Elena nunca tenha ouvido falar de Lucio Magri, assim como o intelectual italiano provavelmente nunca tenha ouvido falar da jovem atriz. Em um primeiro instante ninguém veria nenhuma semelhança entre os dois personagens, mas algo muito forte os uniu.

Ao assistir Elena, documentário de Petra Costa (irmã da personagem que dá título ao filme), nos deparamos com uma pessoa que encarava a arte não como mero produto de entretenimento. Mas sim como algo que representava o sentido da vida. Já para Lucio, o que dava sentido a sua vida era a política e Mara, o grande amor da sua vida.

O alfaiate de Ulm, pode ser lido não apenas como um livro de memórias, mas também como uma ode a vida e a coragem.

Lucio entra para o PCI (Partido Comunista Italiano) ainda jovem, nunca foi um burocrata, sempre lutou pela construção da revolução que libertaria o povo italiano. Quando o partido parecia ter perdido o rumo no pós 68, empreendeu um duro combate contra a burocracia sendo derrotado e expulso do partido. Anos depois acaba voltando e sairá novamente apenas quando a direção transforma o velho PCI em Partido Democrático.

Quando Lucio perde uma das razões de sua existência sofre o primeiro golpe, o segundo ocorre após a morte de Mara. Sem as duas razões que o motivava a seguir em frente Lucio escreve esse livro e meses depois parte para a Suíça onde comete o suicídio assistido, prática permitida no país.

Já o que dava sentido para a jovem atriz Elena Costa era a arte. Desde criança a menina costumava brincar de atuar na frente e atrás de uma câmera que ganhou dos pais. Adolescente entra para um grupo de teatro onde parecia ter um futuro promissor. Mas Elena não desejava status, queria apenas a plenitude da arte.

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Em busca dessa plenitude parte para os Estados Unidos com o sonho de fazer cinema. Porém, com a dificuldade enfrentada fora do país a arte já não preenche mais a vida da garota e ela opta pelo ato final. Certo dia Elena pendura no quarto um pôster da peça Elektra e como seu último ato comete suicídio.

Não podemos encarar o ato de Lucio e de Elena como um ato de fraqueza, mas sim como um ato de coragem. Cada um de nós passa a vida buscando formas de preencher um vazio que nos persegue. Vazio que varia de intensidade, de pessoa para pessoa.

Elena respirava e vivia a arte e essa arte preenchia o seu vazio. Já para Magri sua vida era a política e Mara. Quando os dois perderam a capacidade de preencher o vazio que os rodeavam optaram por uma atitude drástica.

Lucio e Elena foram duas pessoas que viveram a plenitude da vida e quando viram que já não havia mais sentido ficar por aqui optaram em dar um ponto final, e sair de cena antes de virarem meros coadjuvantes de uma vida medíocre.

A água e os sonhos

Por Ismail Xavier – crítico de cinema – 12/9/2014

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Olhos de ressaca, curta-metragem de Petra Costa, traz no título referido a Capitu a metáfora que aproxima o desejo, o feminino e o movimento das águas tão presente em Elena. Na ressaca, o mar está agitado, ameaçador e, ao mesmo tempo, tem um forte poder de atração, tal como esses olhos que a imagem do escritor identifica com ardilosa sedução. O que me impressionou em Elena foi, no plano formal, a relação tão forte do feminino com o motivo das águas. Há uma constante liquefação de quase tudo, digo “quase” porque deste processo está excluída a figura central que a voz de Petra define como a memória inconsolável de Elena que é pedra, aquilo que jamais irá se dissolver. Um movimento notável no filme é esse desejo narcísico de identidade com Elena, desejo marcado pelo trauma da morte da irmã que se suicidou quando Petra tinha sete anos. Esta é uma relação muito delicada que o filme trabalha de forma expressiva na constelação de motivos que o impulsiona, algo que está no cerne do desafio enfrentado pela cineasta ao realizá-lo. Ou seja, o confronto com a pulsão de morte que está lá implicada em sua malha poética que sinaliza esse processo de identificação que Petra tem de trabalhar, para superá-lo, e que sintomaticamente se traduz em sua estrutura poética feita de repetições, de vais e vens no tempo.

O tratamento da luz e da imagem desfocada, em que somente um detalhe resta nítido, tem especial efeito nessa travessia, seja nas cenas ensolaradas, seja nas cenas noturnas. A irradiação e os reflexos muito fortes criam efeito semelhante à experiência que se tem quando raios são refratados na passagem do ar para água e criam espectros variados, essa iridescência reiterada numa quantidade enorme de imagens relacionadas com esse senso de liquefação já comentado. Figuras da fusão dos corpos, ambíguas, instáveis, se ligam às vezes à nossa dúvida diante de um rosto – é Petra ou Elena? – que tem a ver com o desejo de identidade, decisivo na relação de Petra com a irmã. Estes são motivos que dominam a construção formal.

>>Assista ao debate no qual Ismail Xavier participou ao lado da diretora Petra Costa, da pesquisadora Esther Hamburger e de Carô Ziskind, roteirista de ELENA, realizado no dia 2 de julho de 2013, no CineUsp, em São Paulo

Debate sobre o filme ELENA no Cinusp – com Petra Costa, Ismail Xavier, Esther Hamburger e Carô Ziskind from Petra Costa on Vimeo.

No plano temático, o motivo do suicídio ganha tradução na iconografia e nas citações emblemáticas, como é o caso de outra personagem célebre, Ofélia, que Petra interpretou em uma experiência de teatro universitário. Ao trazer a personagem de Shakespeare para o filme, ela atualiza a iconografia melancólica consagrada pelo quadro de John Everett Millais, um dos destacados pintores do grupo dos Pré-rafaelitas, no século XIX. As flores, acopladas ao feminino e ao corpo inerte embalado pelas águas, compõem um motivo visual forte em Elena, um dos vetores de uma coerência poética que perpassa todo o filme.

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Em contrapartida, o lado afirmativo da vida habita as memórias de infância e adolescência, marcadas pelo mundo da dança, pelo senso de posse integrativa do corpo trazido pelo prazer performativo que retorna com muita força ao final, sinalizando a promessa de superação implicada na realização do filme, após a travessia que em que a cineasta lidou com uma densa rede de memórias em parte apoiada por uma expressiva documentação visual típica ao gênero do “filme de família”, importante na história do cinema, de que Elena vem se apropriar com originalidade.

Existe na experiência em foco uma cronologia, mas do ponto de vista de imagem, de som, de música, de voz, de temas, o jogo não é cronológico. Valem as referencias subjetivas, as ondas de memória que elaboram a dor que sempre retorna, porém transformada para que nem tudo se reduza a um processo de repetição ligado ao trauma. A tensão repetição-superação mobiliza o espectador que aí se projeta e refaz um percurso próprio de relações referidas às suas experiências, pois o trabalho de roteiro (com Carolina Ziskind) e realização afirma um movimento em que as metáforas visuais atualizam um imaginário que não é singular ou pessoal em demasia, como bem se pode observar na leitura do ensaio de Gaston Bachelard A água e os sonhos – Ensaio sobre a imaginação da matéria, que traz sua reflexão sobre motivos que reencontramos no teor da experiência das irmãs tal como recriada por Petra, que soube transfigurá-la, para melhor partilhá-la, dado essencial para o alcance estético e cultural do filme.

Texto integrante do livreto do DVD ELENA, lançamento do IMS – Instituto Moreira Salles

E ela? Não volta mais?

Por Samanta Esteves – Blog Entre o Ser e as Coisas – 25/08/2014

6777734568_1852fa2ee5_z“Elena, sonhei com você essa noite. Você era suave e andava pelas ruas de Nova York com uma blusa de seda. Procuro chegar perto, encostar,sentir seu cheiro. Mas quando eu vejo você está em cima de um muro, enroscada em um emaranhado de fios elétricos. Olho de novo e vejo que sou eu que estou em cima do muro, eu mexo nos fios buscando tomar um choque e caio de um muro bem alto. E morro.|

Assim começa o documentário de Petra Costa, narrando um sonho e brincando com imagens fugidias e fluidas, como as lembranças rarefeitas que guarda de Elena, sua irmã. A narrativa intimista acerta ao recusar a arrogância do discurso documental. Não quer encontrar respostas ou validar verdades sobre a morte da irmã. E, principalmente, não busca representar fielmente os acontecimentos, porque nenhuma representação é capaz de reconstituí-los, senão através de vagos fragmentos que se sabem limitados.

Ao falar sobre a irmã, Petra não busca certezas, senão impressões – estas, sempre frágeis, duvidosas, contaminadas pelo tempo e pelo olhar. A narrativa é composta por um mosaico de impressões unidas por um fio frágil: a voz de Petra.

A história pessoal da diretora não nos interessa apenas porque comove, mas porque toca em uma questão essencial para a existência humana: a possibilidade de recriar o passado,  ressignificando o que ficou. Petra  busca Elena mergulhando no lago de sua memória e encara a ausência da irmã em um ato de saudade e de coragem.

Mergulha para não se afogar.

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Ao olhar para a morte, é sobretudo a vida que Petra está buscando, mas a vida só existe nas lembranças, nas palavras. “As memórias vão com o tempo. Se desfazem. Mas algumas não encontram consolo. Só algum alívio nas pequenas brechas da poesia. Você é minha memória inconsolável feita de pedra e de sombra. E é dela que tudo nasce e dança”, diz em uma cena. É exatamente essa passagem quase imperceptível da vida que somos convidados a testemunhar, essa  mágica que se dá nas brechas da existência, quando saudade vira dança e a angústia; poesia. Criação.

Vencer a morte não é viver, é criar. Elena criava. Seu corpo de atriz dava vida a matéria morta. Era tão boa atriz que talvez a dor de cada personagem representado tenha ficado cravada em seu corpo como ferida aberta. Nos caminhos infinitos da arte, Elena estava sempre a morrer, como quem encena a morte para conseguir viver.

Por algum motivo, a luz emanada da arte deixou de iluminar Elena, tão jovem. Por que será que as coisas deixam de fazer sentido para alguém? Pergunto quando a morte se dá.

A morte acontece quando a gente morre?  Quando a mente deixa de sonhar? Quando o coração pára de bater? De diversas maneiras, a morte se dá no instante em que os sentidos se perdem, dissolvem.

Para Elena, o significado da vida residia na arte.  Quando Elena perde a arte como possibilidade de sentido, não consegue mais fazer teatro e a vida se torna  impossível.

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Seu sofrimento; insuportável. Se a existência é movimento, não há vida fora dele.

O que não é criação, é estado de morte.

Elena é uma obra de angústia, de dor. Não suaviza tristezas, não oferece saídas. É, por vezes, cruel. A beleza está nas pequenas delicadezas do cotidiano, desvendada na poesia garimpada da memória, que não vem pronta. É sempre busca.

Em Elena, tudo dança, se move. As cenas, as lembranças, o tempo. A impressão que fica é a de que as memórias vibram, na tentativa de criar sentido a uma ausência latente, ao que já não é. Sua busca nos diz respeito, na medida em que Petra nos traz a experiência de um percurso que revela o movimento inerente a vida, a delicadeza oculta na arte, o alívio das memórias inconsoláveis.

Elena, filme – resenha, reflexões, saudades

Por Giovana – Blog Além da Vida – 16/8/2014

Elena-CorpoDeBaile3-1988-foto_Lenise_Pinheiro_divulgaçãoAcabei de assistir ao filme brasileiro ELENA. É um filme autobiográfico da diretora, Petra. A irmã de Petra, a supracitada Elena, era atriz e suicidou-se aos 20 anos.

O filme é lindo, absolutamente lindo. Suspeito que a Petra Costa tenha aspectos no mapa em libra ou uma Vênus forte – o filme é de uma delicadeza sublime. A fotografia é linda. A narração é linda. A trilha sonora é linda.

A história, posto que é verdadeira, é linda de um jeito profundamente pungente.

“As memórias vão com o tempo. Se desfazem. Mas algumas não encontram consolo. Só algum alívio nas pequenas brechas da poesia. Você é a minha memória inconsolável, feita de pedra e de sombra. E é dela que tudo nasce, e dança.”

Eu vejo um filme assim tão bonito e doloroso, com depoimentos tão sinceros da Petra e da mãe dela, e choro. Eu sou capaz de ter uma boa dimensão da dor dessa perda e da imensidão do peso e das lacunas.

A minha mãe se suicidou. Tal como Elena. E assim como é muito difícil enterrar a mãe com um fim desses, eu só posso imaginar o quão difícil é enterrar a filha. Ou irmã.

Eu pensei durante o filme que minha mãe merecia uma homenagem em forma de obra, também. Talvez um livro, no futuro.

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ELENA é um filme lindo. Mas foi muito fundo em mim. Porque eu não só perdi minha mãe. Eu também quase me suicidei depois, quase estendi esse ciclo de dor para o  meu irmão e amigos. A minha empatia é tanto para com Petra e a mãe dela quanto para com a própria Elena. Eu entendo desse vazio escuro que parece que jamais, jamais passará.

Felizmente, eu não só sobrevivi como estou nesse momento vivenciando uma mudança muito grande no meu jeito de processar as dores. Felizmente, e sou muito grata a isso, a espiritualidade, as pessoas e espíritos que tem atuado nesse meu desenvolvimento tem mudado muitos paradigmas no jeito que eu enxergava o mundo.

des5Eu sinto falta da minha mãe, eu sinto muita falta mesmo. Eu queria poder abraçá-la, eu queria poder levá-la para ver filmes, para comer fora, para provar minhas comidas. Para ler meus poemas. Para ver como meu gato está grande e gordo. Para  ver que eu talvez me torne uma mulher bonita, mesmo com acne. Mesmo com as cicatrizes.

A Petra fez um filme lindo sobre a saudade dela. Sobre o quanto essa falta imiscuiu-se na subjetividade dela. Na história dela. No jeito dela ver o mundo.

E é isso uma das coisas mais bonitas desse filme: É sobre a saudade, a falta e os efeitos da falta. Mas é um filme da Petra sobre a Elena. E com toda a dor que a Petra deve sentir, ela construiu uma coisa linda. Mais do que sobreviver, ela fez arte. Ela fez da sensibilidade dela uma ótica delicada para enxergar as coisas. Ela criou.

Gratidão, Petra Costa, por me lembrar que por enorme que seja a saudade, a melhor homenagem que podemos prestas é seguir.

Documentário mais assistido no Brasil em 2013 entra em cartaz no Bloor HotDocs

Por Christian Pedersen – Oi Toronto – 6/8/2014

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‘ELENA é uma experiência cinematográfica rara. Um filme que provoca 60 insights por minuto’, disse o diretor Fernando Meirelles depois de assistir ao filme. Dirigido por Petra Costa, ELENA é um documentário baseado na vida da atriz Elena Andrade, a irmã mais velha da diretora. O filme já foi visto por mais de 45 mil pessoas no Brasil, o que para um documentário brasileiro é um “big deal”. Premiado nos festivais de Brasília, Havana e Varsóvia (entre outros), Elena será exibido nos dias 8, 10, 11 e 14 de agosto, no Bloor HotDocs Cinema. Participe do sorteio e concorra a ingressos.

Sinopse

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Elena viaja para Nova York com o mesmo sonho da mãe: ser atriz de cinema. Deixa para trás uma infância passada na clandestinidade dos anos de ditadura militar e deixa Petra, a irmã de sete anos. Na hora do adeus, a atriz dá um modesto presente para a irmã: uma concha. “Se você sentir falta de mim, coloque-a no ouvido para que possamos conversar”

Duas décadas mais tarde, Petra também se torna atriz e embarca para Nova York em busca de Elena. Tem apenas pistas: filmes caseiros, recortes de jornal, diários e cartas. A todo momento Petra espera encontrar Elena caminhando pelas ruas com uma blusa de seda. Pega o trem que Elena pegou, bate na porta de seus amigos, percorre seus caminhos e acaba descobrindo Elena em um lugar inesperado. Aos poucos, os traços das duas irmãs se confundem, já não se sabe quem é uma, quem é a outra. A mãe pressente. Petra decifra. Agora que finalmente encontrou Elena, Petra precisa deixá-la partir.

O filme fala sobre a persistência das lembranças, a irreversibilidade da perda, os efeitos da ausência de sua irmã, as emoções que Petra chama de “memórias inconsoláveis​​”.

Jornada

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A ideia de fazer um filme sobre sua irmã Elena surgiu quando a diretora Petra tinha 17 anos. A jovem se deparou com um dos antigos diários da irmã em casa, escrito quando ela tinha apenas 13 anos. Em uma entrevista, a diretora declarou que teve a estranha sensação de que estava lendo suas proprias palavras, “como se fosse o meu diário”, descreveu Petra.

Da leitura daqueles diários até o projeto do filme passaram-se dez anos. Petra descobriu cerca de 50 horas de vídeos caseiros filmados por sua irmã, dos quais pelo menos 20 horas tinham sido filmadas no ano em que Petra nasceu. Aos 13 anos, Elena recebeu sua primeira câmera de vídeo. Imediatamente, Petra começou a entrevistar cerca de 50 familiares e amigos de Elena, reunindo um total de 200 horas de filmagem.

Quando foi para Nova York, ela levou consigo uma caderneta de telefone com os antigos contatos da irmã e começou a rastrear os nomes, um por um, procurando-os pela internet e nas redes sociais. O filme finalmente começa a tomar forma e ganhar sua estrutura definitiva quando a diretora decide ir para frente das câmeras, tanto como uma personagem como uma documentarista. Petra filmou sua jornada e elaborou seu roteiro ao lado da colega Carolina Ziskind.

Sorteio de ingressos

O OiToronto vai sortear um par de ingressos, que darão o direito a um(a) leitor(a) com acompanhante a assistir ao premiado documentário Elena na sessão de lançamento, nesta sexta, 8 de agosto, no Bloor HotDocs Cinema.

Para participar, confira o vídeo abaixo, procure pela resposta para a pergunta “Com quem Elena foi para a Amazônia?”, e envie um email com telefone de contato (até quinta, 7 de agosto) para promocao@oitoronto.ca

Atenção: Só serão aceitos emails com número de telefone da Grande Toronto.

Os ingressos são cortesia da distribuidora Syndicado.

 

10 Grandes Documentários Recentes

Por Gabriel Oliveira – Blog CineSet – 17/7/2014

Gênero muitas vezes rejeitado pelo grande público, o documentário é muito mais do que uma mera reportagem ou um aglomerado de depoimentos chatos, ao contrário do que muita gente comumente pensa. Longe de ser uma representação fiel da realidade, assim como a ficção, através do cinema documental é possível contar uma amplitude de histórias, explorando diversas técnicas. Por isso, o Cine Set traz hoje uma lista de dez documentários recentes, produzidos entre 2010 e 2014, com produções que valem a pena ser conferidas. Acompanhe!

1. O Ato de Matar (2012), de Joshua Oppenheimer

O Ato de Matar é a prova de que às vezes a vida real pode ser mais assustadora do que a ficção. Na Indonésia, o líder militar Anwar Congo e seus “comparsas” promoveram uma série de assassinatos após chegar ao poder através de um golpe militar, em 1965. Hoje, todos vivem livremente, orgulhosos de seus crimes e celebrados como heróis.

A fim de mergulhar nesse período obscuro da história do país que ainda não foi condenado nem pela própria sociedade, Joshua Oppenheimer decide convidar Congo e outros militares envolvidos nos assassinatos a reencenarem dramaticamente suas táticas de tortura e matança, com direito a figurinos, maquiagem e efeitos especiais. O resultado é assombrador e surreal, desvelando as memórias dos assassinos e os confrontando com a responsabilidade de seus atos.

2. Blackfish – Fúria Animal (2013), de Gabriela Cowperthwaite

Denúncia e revolta dão o tom de Blackfish, documentário que retrata a vergonhosa realidade por trás da SeaWorld, uma das principais empresas de espetáculos aquáticos protagonizados por orcas, golfinhos e outros animais. O filme poderia ficar restrito apenas aos ativistas  e amantes de animais, mas Gabriella Cowperthwaite é eficiente ao defender sua tese sem recorrer a uma postura cega e apaixonada.

Para isso, a pesquisa empregada pela diretora, através de depoimentos incriminadores e imagens e dados chocantes, revela a cultura de tortura por trás desses espetáculos, e as consequências trágicas do desrespeito não só aos animais, mas a muitos dos profissionais envolvidos.

3. As Canções (2011), de Eduardo Coutinho

Das muitas perdas que o cinema teve em 2014, Eduardo Coutinho foi uma das mais brutais e inesperadas. Aos 80 anos de idade, o diretor nos deixou com um legado de obras historicamente importantes, como Cabra Marcado para Morrer, e filmes que exploravam aspectos da sociedade brasileira, como O Fio da Memória e Boca de Lixo. Suas últimas produções foram marcadas por um tom mais intimista, que deixava ainda mais claro a capacidade que Coutinho tinha de descobrir, no cotidiano alheio, histórias de vida interessantes e inesperadas.

O último desses projetos foi As Canções, de 2011. No mesmo esquema de Jogo de Cena, Coutinho recebe anônimos em um estúdio, e pede que eles contem histórias relacionadas a uma canção que os marcou. Daí surgem muitos relatos emocionados e até mesmo divertidos, como o caso de um marinheiro aposentado que decide como será sua própria saída de cena, ou personagens que cantam composições próprias sobre amores nunca esquecidos. Em um filme extremamente simples e direto, Coutinho revela muito da relação íntima de um povo com a música brasileira e, claro, com a cafonice do amor.

4. ELENA (2013), de Petra Costa

“Você é minha memória inconsolável”, diz Petra Costa em certo momento do filme, referindo-se à irmã, Elena. É uma frase pesada e dolorosa, mas que define bem um dos principais elementos que compõe o filme de Petra: memórias. ELENA é a forma que Petra encontrou para tentar superar a dor da perda de sua irmã mais velha. Para tanto, em vez de constituí-lo de imagens de apoio e depoimentos secos, a jovem diretora investe em um conglomerado de lembranças e sonhos (ou pesadelos), a partir de trechos de fitas VHS antigas, fragmentos de suas andanças, cenas de dança na água e uma narração quase onipresente, marcada pelo texto reflexivo e poético. Esse mosaico extremamente pessoal acaba dando um formato não-convencional ao seu documentário, que vem carregado de lirismo em meio a tragédia.

Cercado de muita publicidade – como um teaser misterioso com a presença de “globais” –, o filme atingiu um sucesso inesperado no ano passado, e este ano começou sua incursão nos EUA. Embora o jogo de marketing certamente tenha ajudado, isso não tira os méritos de Elena: ao mergulhar na sua própria dor, Petra cria um retrato não só da irmã, mas dela mesma e da mãe. A dor das três personagens, ainda que envolta em uma situação bem particular, tem um caráter quase universal que envolve o espectador na trajetória de Petra.

5. Exit Through the Gift Shop (2010), de Banksy

Mesmo com todas as dúvidas quanto à veracidade da história contada em Exit Through the Gift Shop, o fato é que o filme é uma divertida obra que põe em debate a arte nos dias atuais. Com uma cara pop, o documentário narra a história (supostamente real) de Thierry Guetta, um francês que vive em Los Angeles e quer fazer um filme sobre os expoentes da street art na cidade. No meio do caminho, porém, Guetta decide se tornar o próprio artista, adotando a alcunha de “Mr. Brainwash” – mas obviamente sem ter a menor ideia do que está fazendo. É desse clima de megalomania de Guetta que o polêmico Banksy se aproveita para fazer seu filme.

Conhecido por suas obras de graffiti que combinam doses de humor negro, ironia e críticas sociais, Banksy emprega esse mesmo tom sarcástico ao filme, tornando a experiência de acompanhar as loucuras do Mr. Brainwash mais divertida, mas sem se esquecer de levantar um ponto importante: afinal de contas, o que ele está fazendo pode ser considerado arte? Como validar o que é e o que não é arte? Guetta pode até não existir, e, se esse for o caso, essa é a maior peça que Banksy já pregou em todos nós – e, mesmo assim, sua maior obra.

6. A Imagem Que Falta (2013), de Rithy Panh

Em 1975, o governo do Khmer Vermelho tomou o controle do Camboja, assolando o país com uma matança generalizada de intelectuais e artistas e a escravidão de milhões de habitantes que passaram a trabalhar em campos de concentração. No entanto, poucos registros sobraram desse período obscuro da história cambojana.

Sem fotos e com poucas cenas de arquivo, a solução encontrada pelo cineasta Rithy Pahn para recriar sua infância dolorosa nesse período é um recurso tão frágil quanto as vidas perdidas nessa época: através de pequenos bonecos esculpidos em madeira, o diretor dá vazão a suas recordações e reencena passagens importantes da época. O depoimento pessoal de Pahn, aliado às figuras de madeira, constroem um filme memorável, e muitas vezes, doloroso em seu retrato do sofrimento de um povo.

7. Indie Game: The Movie (2011), de James Swirsky e Lisanne Pajot

Premiado no Festival de Sundance de 2012, o documentário dirigido pela dupla de canadenses James Swirsky e Lisanne Pajot retrata as dificuldades enfrentadas por uma série de desenvolvedores independentes de videogames no processo de criação dos seus jogos. O trunfo de Indie Game está em explorar os objetivos desses personagens e sua obsessão em criar um produto quase perfeito.

Além disso, o filme levanta questões interessantes sobre o propósito desses jogos, pondo em xeque o videogame como uma forma de arte. Afinal de contas, se é a maneira de se expressar encontrada pelos personagens em questão, por que não seria?

8. José e Pilar (2010), de Miguel Gonçalves Mendes

Se é verdade o dito de que por trás de todo grande homem, há uma grande mulher, a relação entre José Saramago e Pilar Del Río é a prova viva disso. Tomando o relacionamento de 25 anos entre os dois como ponto de partida, o filme de Miguel Gonçalves Mendes é um retrato intimista do cotidiano do saudoso escritor português, falecido em 2010, e responsável por obras como Ensaio Sobre a Cegueira e O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Revelando uma personalidade simpática por baixo da expressão carrancuda, Saramago se mostra bem à vontade em frente à câmera, seja em entrevistas ou em momentos espontâneos “flagrados” por Miguel – como a cena em que o escritor aparece compenetrado em frente ao computador, e descobrimos em seguida que ele não está escrevendo, mas sim jogando paciência.

Mais do que Saramago, o filme mostra como a jornalista e tradutora Pilar Del Río desempenha um papel fundamental na vida do marido, organizando sua vida e preservando sua obra. A fotografia melancólica e a competente montagem, aliadas ao carisma do casal de protagonistas, tornam o documentário uma experiência inspiradora ao revelar mais do trabalho e da vida do escritor e da mulher forte que o acompanhava e humanizar o casal.

9. Pina (2011), de Win Wenders

O trabalho extraordinário da coreógrafa alemã Pina Bausch encontra nas mãos de Win Wenders uma homenagem sensível que deixa a artista presente em cada cena do filme mesmo que ela não apareça. Além de depoimentos dos dançarinos que faziam parte da companhia dirigida por Pina, Wenders recria as coreografias da artista em pleno espaço urbano, assim preservando a criação desta para a posteridade.

Mais do que um puro registro, o filme de Wenders é uma viagem deslumbrante que chega a ampliar as possibilidades das danças de Pina, ao empregar recursos do cinema para tanto, como a montagem que alterna velhos e jovens no palco durante uma das coreografias.

10. Raul – O Início, o Fim e o Meio (2012), de Walter Carvalho

Entender a metamorfose ambulante que era Raul Seixas pode ser difícil, mas Walter Carvalho dominou bem a tarefa em seu documentário. Através de depoimentos de amigos, parentes e parceiros de Raul, envoltos numa montagem bem elaborada, o filme consegue fazer um retrato digno ao artista.

Ao contrário de cinebiografias “chapa-branca”, o documentário consegue abarcar bem os vários extremos de Raul, mesmo em sua fase mais decadente. Logo, o resultado é um registro amplo e emocionante, capaz de atrair não só os fãs, mas também gente que não conhece a obra de um dos nomes mais marcantes do rock nacional.

Bônus: A Cidade (2012), de Liliana Sulzbach

Exibido no Amazonas Film Festival de 2012, o curta-metragem A Cidade recebeu um prêmio especial do júri por conta da sensibilidade do trabalho. Nada mais justo, já que o filme de Liliana Sulzbach mostra com delicadeza o cotidiano da comunidade Itapuã, no Rio Grande do Sul, formada por poucos moradores, todos acima de 60 anos. Liliana vivencia o ritmo de vida deles, e ouve atentamente suas histórias, guardando para revelar ao espectador apenas no final o porquê daquelas pessoas estarem ali, tão isoladas do resto o mundo. E quando enfim descobrimos, revemos toda a história de novo, com uma nova percepção. Mais do que um mero truque, é um exercício de ponto de vista da diretora sobre os personagens, com classe.