Elena e os cegos de minha vida…

Por Karla Cajaiba – 21/9/2013

Aos 17 anos fui apresentada ao universo de José Saramago. Tudo parecia confuso, uma linguagem, ate então, inusitada para mim. Pensei em recuar, mas continuava a ler cada palavra de “Memorial do Convento”. Deliciava-me a cada página. Convivi dias com Baltazar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas, numa história de espiritualidade, de ternura, de misticismo e de magia. Minha paixão pelo autor virou vício e foi assim que conheci “Ensaio sobre a cegueira”. Fiquei perplexa e abalada, me entregava no sofá de casa, chorosa e pensativa. Minha tia pedia para eu parar de ler e se culpava por se dar conta de que aquele podia não ser o momento ideal para tal leitura, tão forte, profunda e um tanto complexa. Mas eu não desisti, chorava a cada página, respirava, recuperava o fôlego e seguia. Criei para mim uma metáfora daquela estória, (ou seria mesmo uma história?). Associei tudo àquilo ao que eu estava vivendo naquele instante. Uma menina nascida e criada na cidade do interior, cercada de carinho, amor, zelo, vizinhos e amigos. Cercada por pequenos conflitos sociais, (além dos políticos, é claro, esses são difíceis em qualquer lugar desse país). De repente se depara com uma sociedade cruel, abarrotada de informações e cobranças diárias, não mais aquelas cobranças provenientes da idade, mas sim uma luta acirrada para sobreviver. Me dei conta que dali em diante não existia mais vida como antes e que naquele instante a guerra começaria. Um tanto cruel minha comparação, mas se racionalizarmos é bem isso. (Óbvio que bons momentos existem, mas a vida não é feita apenas de oba oba e comidinha na mesa). Saramago acabará de descrever o que eu enfrentaria dali para frente: Uma cegueira coletiva, onde poucos, ou raras pessoas se veem e se respeitam. Minha vida adulta estava apenas começando e eu estava sendo privilegiada de ganhar aquele manual de boas vindas à maturidade. Os anos passaram e a vida seguia, as imagens do livro percorriam meus pensamentos como algo corriqueiro, como acordar e escovar os dentes, se alimentar, tomar banho. Enfim, não esquecia cada imagem criada ao ler aquelas páginas. Eram imagens tão fortes e importantes para mim, às imagens eram orgânicas, não se diluíam. Quando de repente surge o filme “Ensaio sobre a cegueira”. Decidi que não assistiria. Para mim as imagens que eu tinha armazenado ao ler o livro já eram suficientes para prosseguir. No ultimo domingo fui ver o filme sobre a história de uma atriz que sonhava em ser artista de cinema. Uma história tão dramática e caótica da vida de um ser que apenas quer ser. Aquilo me tomou de um jeito, me tirando o fôlego, o ânimo e a esperança. Aquele filme me encheu de culpa, até as antigas vieram à tona, as novas decidiram se manifestar e os meus dias foram ficando pesados, tristes e tensos. Elena estava dentro de mim. Não, mas eu não podia carrega-la também, os cegos de Saramago já estavam aqui, não havia mais espaço para outro ser. Definitivamente Elena precisa partir. Petra também junto com sua mãe. Era muita gente, muita culpa, muita sombra para eu dar conta. Mas o que fazer? Tem dez anos que os cegos estão aqui, dentro de mim, penso neles, me indigno com as atitudes e crueldades, me emociono com eles, procuro ver a beleza que eles viram, que experimentaram, mas com Elena seria diferente, dessa vez não, eu não ia dar espaço para conviver com ela. Cheguei em casa após uma aula, onde Elena, mais uma vez em menos de uma semana, era assunto para mim e pensei: Hoje ela vai embora, não preciso guarda lá aqui. A única forma de tira lá de mim era reforçar a imagem dos cegos de Saramago. Decidi então que juntaria as minhas imagens e as do filme e eles ganhariam mais espaço em meus pensamentos, eles ficariam mais presentes em mim e Elena iria embora, desse jeito, bem sutil, nem precisaria expulsa la, ela partiria se dando conta de que aqui não havia mais espaço. Deitei-me no sofá, liguei a TV e dei play naquele filme gravado há pouco mais de um ano. Eu precisava recompor minhas imagens, ver o rosto daquela mulher, a única que enxergava em meio aquele caos e devaneio de Saramago. Ela era quem ia por para fora a tal Elena, a intrusa viera me perturbar minhas noites e os meus dias. E assim a cada gesto daquela mulher, a cada olhar, eu pensava: isso tudo já é suficiente para mim. Mas foi ai que tudo começou. Elena deixa de ganhar espaço para Petra penetrar meus pensamentos, olhava para o filme e Petra vinha a minha frente, pensei: devo ser louca ou estar louca, o que Petra tem a ver com isso agora? Lembrei que hoje eu soube o significado de seu nome e que aquilo havia mexido comigo e dado força para ela também penetrar meus pensamentos: rocha, pedra esse é o significado, o que explica muito de sua personalidade, nada frágil por sinal. Saramago também criou sua Pedra/Petra. Aquela mulher, a única que enxergava. Petra também foi à única que enxergava o mundo e as coisas ao seu redor. Porque a mãe fechou os olhos, Elena só enxergava a si própria, ou melhor não enxergava nem a ela mesma. Ela estava afogada demais em seus devaneios para ver quanta vida existia. A mulher de Saramago era doce, era leve, era amável. Acolheu a todos. Perdoou uma traição. Petra também se acolheu, Petra também se amou e segurou a barra da mãe. A mulher de Saramago foi tão forte, tão brava, tão serena que trouxe a visão de volta para os outros, ela devolveu a visão a cada um deles, mostrando que os olhos estão além da alma. Petra trouxe para o mundo a sua dor transformada em superação através da arte. Petra encanta a cada um de nós, pobres mortais com a beleza de ser leve e de amar! As mulheres, todas elas se fundiram em uma só, não tinha mais espaço para denominações, então decidi abortar os nomes e ficar com a imagem e a força que elas possuem. Eu descobri que sempre há espaços dentro da gente para mais sentimentos e também para dores. Petra e sua família saiu do meu estomago e seguiu para meus pensamentos junto aos cegos e a mulher de Saramago. Descobri que digeri la podia durar anos e que isso poderia me causar um mal estar constante. Ela em meus pensamentos torna-se mais leve, mais doce. Sinto-me mais serena e mais tranquila de que nada é definitivo. Nem precisa, pois tudo é um ciclo que gira e que volta, que dói e se cura, que entra e que sai, que permanece e encanta. Estou entulhada de imagens/ação!!! Ufa.

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