ELENA de Petra

Por Marcela Antelo* – 20/1/2014

Artigo publicado na edição 73 de novembro 2013 da Revista da Escola Brasileira de Psicanálise.

Elena filme

Sabemos por Goethe, por Nietzsche, por Freud, e porque é assim, que Elena é o modelo de todas as mulheres. A culpada foi Elena de Tróia, que era de Homero e de Euripides, mais do que de Paris ou Menelau. Seguiu-a Elena, do Fausto, figura da praga que lhe joga o diabo Mefistófeles — nos joga? — “Verás uma Helena em cada mulher¹” e, mais recentemente, a Elena da tragédia de Althusser. E, porque a poesia obriga, hoje temos ELENA de Petra.

Elena é uma personagem que não sabia que andava em busca de um autor, até que o encontrou, e nada pôde saber disso. A psicanálise nos acostuma a habitar o abismo que há entre a verdade e o saber que dela podemos extrair, nos ensina a renunciar a essa cópula impossível, e à Petra agradecemos que o coloque em evidência, o ponha em cena.

Petra elucida o impasse que consiste em cantar loas ao ideal absurdo de um sofrimento mensageiro de verdades. “Não há verdade, que ao passar pela atenção, não minta”, dizia Lacan, e este princípio desafia o limite entre a ficção e o documentário. Não há tal limite, há borda, uma fronteira incerta que é, usando uma expressão de Lacan, um litoral, como o que separa e junta a areia do mar. Indecidível, diriam os lógicos.

Por isso adoro que a Elena de Petra seja aquática. Liquido amniótico por todos os lados, eis o feminino. Talvez por essa razão Virginia Woolf, outra mulher que ousou dizer da morte, a tenha realizado na água. Woolf procurou um gênero híbrido para dizer sobre sua vacilação, sobre a sexuação, a filiação, a vida e a morte. Freud chamou de “psicologia submarina” nosso procedimento de investigação, certa vez que decidiu falar sobre a morte.

Sabemos também do boom da literatura testemunhal, apesar de não ser uma novidade —Santo Agostinho, Montaigne, Rousseau, Proust. Uma aquática Amelie Nothomb nos transmite A metafísica dos tubos. O cinema não foge dessa febre. Cinema de testemunho, história oral, autobiografias, escrita de si, frenesi da memória. Ninguém se salva. Até a publicidade a explora. O livro de Paula Sibilia “O show do eu: a intimidade como espetáculo” o testemunha: ela fala de uma subjetividade das superfícies, de acordo com uma crescente publicização do privado: um festival de vidas privadas à disposição dos voyeurs, estridente no Brasil, terceiro país mais blogueiro do mundo, segundo ela. O eu como ficção gramatical inventa uma intimidade para si e a dá a ver em escritos êxtimos², satisfazendo a intensa fome de realidade que congestiona a web a cada dia. Vejo pelas perguntas que envolvem o filme na web que há algo assim em jogo para o espectador modelo. Sibilia encontra Lola Copacabana, autora de blogs e blooks, que declara o espirito da época: “Vivo constantemente fazendo o esforço para que não existam na minha vida coisas inconfessáveis.” Tirania de uma transparência cega como ideal da época. Ideal patético: como confessar o que se ignora? Pergunto-me a propósito da vida de Elena. Sibilia diz que hoje se rebobina a vida como um filme, operam-se flashbacks, se aplicam zooms, faz-se travelling ou close-up sobre cenas traumáticas, deleta-se ou se faz um back-up, turbina-se.

Por essa razão, neste comentário, quero insistir em que, no ELENA de Petra, a riqueza está no indizível. Klee disse em sua Confession créatrice que a arte “não reproduz o que é visível senão que o faz ver”. Petra faz uma mise-en-scène da memória, como Godard o propunha, o Cinema como fábrica da memória, mas levando em conta a máxima de Wim Wenders, um filme com buracos onde é possível se inserir.

ELENA de Petra está cheio de buracos, pois trata da escritura da memória no corpo. O que gosto na Elena de Petra é a pele do filme. O cheiro, o som.. Filme cheio de texturas, de superfícies e também texturas sonoras. Discursividade visual e tátil. O háptico, segundo a australiana Laura Marks⁴. Ele é singelo e sóbrio para um tema monumental como é o suicídio, que foi tratado pelos grandes, Coppola, Fassbinder, Haneke, Kieslowski, Truffaut, Amenábar, Lars Von Trier.

Esperemos que as elucubrações de saber não apaguem sua verdade, que não eliminem os buracos da renda fina que Petra teceu e que recolhe sereias e ondinas, insondáveis e recônditas, entre as que a bela e inquietante Elena habita. Tece narrando, porque, como disse Benjamin, o poder da correnteza da narração, — para continuar no aquático —, é levar a dor para longe⁵.

Petra cria pontes, tarefa do luto, sobre o abismo que há entre a experiência e o que dela podemos contar, entre a percepção e a memória, que Freud chamou de Das Ding, A Coisa. Cada vez que nos lembramos de algo, nos esquecemos de algo. O abismo não se dissolve, se povoa. Outro cineasta, Chris Marker, o disse assim: “Não lembramos, reescrevemos a memória as-sim como a historia é reescrita”’. Acontecimentos testemunhais que contam com a câmera de Elena como testemunha. Câmera subjetiva, nunca mais adequada, agalma do filme.

O processo performativo de contar a história de Elena é o modo de reescrever o presente de Petra, pertence ao gênero de Survivor testimony. Lembremos de Os afogados e os sobreviventes (1986), de Primo Levi.

Aí se impõe o meio dizer da verdade, porque abordamos os confins da vida com a morte. Lembremos sempre do furo: mind the gap.

Nesse diapasão, há uma frase da mãe que ressoa no meu Freud e na história da minha geração, a primeira nomeação que ela faz da existência de Elena: “barriga que salva a vida”. Freud parafraseia o príncipe Hal no Enrique IV, de Shakespeare, não sem introduzir uma pequena diferença. Parecemos ignorar, ele diz, que cada um de nós deve uma morte à natureza⁷. O debito se transmite de geração em geração. Freud laico não deve ao Deus pai e sim à natureza. Em lugar de silenciar, denegar, o termo certo é desmentir; buscar palavras para dizer da morte. É curioso que, em uma lembrança de um momento de iminência da morte, Freud faz uso de um duplo registro: um visual — troços de papel flutuando — e outro acústico — alguém lhe grita ao ouvido.

Elena é musa confessa de Petra. Musa como artifício de dar nascimento a um autor, aquele que deseja enfrentar a impotência da palavra diante do real sempre traumático. As musas celebram “as bodas taciturnas da vida vazia com o objeto indescritivel⁸”, nomeia Lacan em sua homenagem a Duras, outra musa de Petra, da qual também lemos as pegadas.

Para finalizar, uma observação em relação às palavras finais de Petra a sua amada e abismal irmã: “Eu me afogo em você”. Eu proponho reler o enunciado como um cogito “petriano”: “Eu me afogo em você, logo flutuo”.

¹ Enunciado citado em carta de Freud a Jung, datada de abril de 1909, segundo CASSIN, B. “L’inconscient, qui volt Hélène en toute femme” em Voir Hélène en toute femme. Collec-tion: Les empêcheurs de penser en rond. Paris, 2000. 

² SIBILIA, P. O show do eu: a intimidade como espetáculo, Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2008, resenhada em Correio, revista da Escola Brasileira de Psicanálise n° 69, set. 2011. 

³ ≪ L’art digne de ce nom ne rend pas le visible: II dessille les yeux » em KLEE, Paul, Confession créatrice em Grohmann, Will, Editions des Cahiers d’Art, 1959, p. 282.

⁴ MARKS, L. The skin of the film: intercultural Cinema, Embodiment, and the Senses, Duke University Press, 2000; ver “Haptic Visuality: Touching with the Eyes”, Frameworks 02/2004.http://www.framework.fi/2_2004/visitor/artikkelit/marks.html 

⁵ BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cullu ra, Obras Escolhidas 1, São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 205. 

⁶ MARKER, C. Sons soleil (100′, Argos Films, 1983). Roteiro em: http://www.markertexKcorrisans_soleil.htm 

⁷ Trata-se das palavras do príncipe Hal a Falstaff em Enrique IV (act. V. esc. 1): “Thou oweit God a death”. 

⁸ LACAN, J. «Hommage fait à Marguerite Duras, du ravissement de Lol V. Stein», ECF, Ornicar? n°34, Paris, p. 13. 

* Psicanalista. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)

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