As tempestades íntimas

Mariana Portela, psicóloga, escreveu sobre Elena em seu blog Confissões, declarações e crônicas… – 21/5/2013

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Todo poeta é um escravo da verdade. E não de forma axiomática, impositiva, encerrada em única possibilidade. A verdade da qual o poeta é um mero instrumento está situada em uma compreensão mais antiga, oriunda da sabedoria que só alcançou os gregos: aletheia. O não esquecimento.

Quando a poesia se torna maior que o seu criador, um estranho fenômeno acomete sua obra: autor de sua solidão, o poeta é capaz de entregar-se ao mundo e doar sua sensibilidade ao plano cósmico, ontológico. Seus dizeres sucumbem à imensidão.

A tranquilidade, enfim, pousa em seus dedos exaustos. Um sono secular invade suas pálpebras inchadas, dilacerando as reminiscências. Ah, como os retalhos do vivido são uma frustrada tentativa de apropriação! Já não é possível imaginar versos em sua concepção, ainda invólucro no coração do pensamento. O universo inunda seu artista e suas águas tornam-se o novo ventre.

Acontece que a doação pode facilmente se transformar em sacrifício. A missão de deixar o Cosmos se apoderar do corpo, da alma, das entranhas é quase insuportável. A arte exige, às vezes, que a vida seja interrompida.

Qual é o peso de sobreviver ao próprio destino? Em qual palavra pode se encontrar abrigo que apazigue o deserto visceral? Quando uma ferida consegue avistar a primeira camada de pele?

É apenas em nueza absoluta. Ao escancarar a fragilidade pesada. Ao gritar para os abismos quais cicatrizes escrevem sua existência. Ao desvendar a multiplicidade de eus despedaçados é possível sonhar uma vez mais.

Por estas razões Elena não é um documentário de cunho pessoal. Não é uma elaboração das “dores que não doem, nem na alma”. O filme confunde-se com a história de todos os artistas que povoaram este mísero corpo celeste.

A protagonista carrega o peso da arte. A irmã tem a missão de desanuviar sua ira, sua incompreensão, seu amor preso às lembranças infantes. Com o dever de salvar a si e a sua Mãe, revelando o inconsolável.

Hoje, falho de ti, sou dois a sós”, disse Pessoa ao indignar-se com a ausência de seu melhor amigo. Quantas madrugadas você não sentiu o mesmo verso, Petra? Quantos naufrágios emanaram de seus olhos, nesta busca invencível pela metade que lhe falha?

Só a coragem é capaz de navegar os esboços e tingir a realidade em quimeras. Sinto-me covarde frente à sua poesia. Quantas palavras estão enclausuradas dentro de mim, esperneando para habitarem um outro mundo que não seja eu. Quanto medo tenho de confessar meus precipícios!

Petra, a plenitude de sua poesia me ensinou que as tempestades íntimas impedem a conjugação da tristeza, desde que haja força para atravessar os mistérios da angústia. As águas retornarão, em calmaria. Límpidas. Salpicadas por tons prateados. É Elena, lunar, luminosa, em órbita ao nosso redor, quando os escuros parecem intransponíveis.

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