Aqui jaz o teu fantasma

Por: Ranieri Brandão – site Filmologia – julho de 2013

Em regra, há no found footage o primeiro nome do cinema: féretro para imagens dos corpos e coisas que não têm mais casa; casa daqueles que se foram.

Nesse sentido, o grande filme construído e amaldiçoado pelo found footage é Jogo da Morte, de Robert Clouse, porque ele vem depor, sobre uma montagem definitiva e complexa, as últimas imagens e movimentos de Bruce Lee, encontrando – ironia de toda Tragédia – a ideia de que a epítome do gênio estava escrita não lá, no filme de Clouse, esse retalho absurdo e surrealista próximo a nós em que o Morto é revivido por um Outro (um dublê terrível, um espantalho), mas aqui, um pouco aquém, num filme imediatamente anterior, O Vôo do Dragão, pelo qual passamos, cegos, sem perceber sua importância fatal. Já ali, Bruce Lee será o fantasma por excelência a se despedir de si no confronto brutal contra Chuck Norris. O mais radical filme de found footage, por conseguinte (ou por consanguinidade?), ou o trecho mais subversivo e cruel deste, é aquele da abertura do Siegel veterano de O Último Pistoleiro, onde a imagem “oficial” dos filmes de Hawks (ou seja, de Hollywood, da “velhice do Mesmo” em Hollywood), por alquimia perversa e nostálgica, se transforma em “arquivo bruto”, peça de diário mofado pelo tempo (Rio Bravo e El Dorado, estes filmes “idosos”, aparecerão já sem as suas cores na colagem da abertura), relicário podre do cadáver de John Wayne, carcomido pelo câncer no cinema e na vida.

Elena, de Petra Costa, é a história de velhas imagens retomadas por uma outra espécie de found footage, pois elas possuem abrigo para voltar – a casa e o seio familiar, e nem tanto a tela de cinema – antes mesmo de saberem sobre sua Morte: assombradas pelo retorno obsessivo e frequente a elas, pela torturante montagem que as alterna com momentos de pose, pela paranoia depressiva e investigativa que, na forma, é uma cruza diáfana e pálida doJFK de Oliver Stone com as propagandas berrantes da MTV, as imagens de Elena servirão para declamações de saudades e ritos de exorcismo que a rigor não tocam Elena (não lhe arrancam nada), a figura “central” do filme, escapando em gestos que não telegrafam os vultos de seu fantasma.

Disseca-se em Elena uma imagem febril através dessa obsessão arquivológica de Petra Costa: sua irmã, a Elena do título, suicidou-se em Nova York, e o relato, o flashback devem sua vida mais aos desejos de Petra do que a qualquer outra pulsão. Daí, o que nos sobra de Elena, entretanto, é esta série de quadros/esquetes de alcova, todos “falados” (o que eles falam afinal não importa tanto assim, mas sim o que Petra fala por cima deles, por cima desse único ato incontestável que é o suicídio), todos acompanhados por outras imagens que fazem título de cortejo a uma coleção enorme de arquivos de Presença de Elena (Petra, estilosa, caminhando por Nova York, expressão distante, interpretação da Dor – ela é atriz – numa espécie de editorial de moda distorcido pelos efeitos de lente ou de pós-produção), que, por si sós, já aglutinariam no devir a organização de um filme completo sobre um Fantasma que de todo não morreu – ou a quem não foi dado o direito de morrer para voltar como cinema. A “coleção”, aqui, não é aquela, típica desta arte, que nos apresenta o corpo do ator como o mapa e o tecido a envelhecerem filme a filme, e a definir, quadro a quadro – série de micro-mortes por segundo – um período da História.

A Elena de Petra, a irmã perdida, a irmã-farol, atriz que não pôde ter escrita em seu corpo uma fração dessa História em Comum (ela sonhava fazer cinema), mas que escreveu a sua passagem nas silhuetas adoentadas da irmã e da mãe, é a figura trágica que ganhará, num único filme (o seu único filme), todas as suas imagens, toda a sua história, devolvidas de uma única vez no presente (tempo) e como presente (dádiva). No entanto, esse esforço em mover uma história não fará com que a conheçamos para além da triste sentimentalidade que se espalha por plano e som, da perda terrível e difícil de lidar. De algum modo, essa será a revanche de Petra contra a “injustiça” daqueles que não telefonaram de volta para sua irmã, depois do teste de elenco em NY: inscrever, a fórceps, melancolia e num texto profundamente frágil – voz off predominante e algo tirânica – o corpo morto de sua irmã na história do cinema, história da qual ela não fez parte.

Operação que seria preciosa, homérica de se assistir, se Elena fosse um filme de Marguerite Duras, em que do corpo do ator (ausente – ou presente como cinzas vulcânicas: Agatha e as Leituras Ilimitadas) é substituído pelo espaço onde antes esteve este corpo raramente filmado. Não falemos aqui da importância do texto em Duras e o quanto ele prejudica o filme de Petra, esse diário de sentimentos verdadeiros que poderiam se calar diante das imagens imortais da irmã, já que, para ela e sua mãe, Elena deixou cicatrizes que beiram à loucura e o desespero totais – e já que a imagem de um morto é sempre uma imagem da vida desse morto, uma vida eterna e per si, nas cintilações/oscilações do cadre. A cisão maior entre Duras e Petra está numa ideia de Fantasma, que ambas não compartilham. Duras nunca encontrará o Fantasma, a Entidade em si num corpo assombrado (porque ele fala, porque este corpo pode fazer parte de um belo filme de terror da Hammer, de uma ideia de Fantasma muito “de gênero”, logo, de carne), porque antes ela só encontra os seus rastros, os locais por onde ele passou há muito tempo – até mesmo o Fantasma se esvai, está nos lugares como presença invisível, revelação fotográfica em reverso, rumo ao branco. Petra, ao contrário, aprisiona as imagens da irmã, as retém e as controla para poder “falar com elas”, as revive como um Frankesntein que se espalha pelos found footages feitos contracampos enxertados; mantém com elas uma relação obsessiva de um colecionismo quase patológico: não ficam os rastros da irmã, sua lembrança imprecisa (além daquela, obsessiva: a atriz que não pôde apresentar sua arte), a diluição de seu rosto, mas sua imagem sempre presente (bem próxima àqueles que retornam ao não suportarem reprimir a morte em As Diabólicas de Clouzot e em O Parque Macabro, de Herk Harvey, ou mesmo Os Outros, de Amenábar), esse Fantasma que, ao lado de si em sua primeira viagem à tela, encontra ainda os recortes de jornal sobre ele, sua própria carta de despedida, o laudo médico sobre sua morte e, mais ainda, a carta da irmã, essa outra que compõeElena do começo ao fim e que não expurga muita coisa. Não é uma carta para quem não está mais aqui, mas uma carta nada clara e nada transtornada para um corpo o qual insistem em manter no plano, em não deixá-lo descansar, falar por si, ganhar enfim uma história que irrompa a restrita importância familiar e que esmague os Outros.

Elena, mesmo sem querer e sem poder, terá de compactuar sua presença natural com as associações fáceis da montagem de Petra, com os laços finos da videoarte que, de algum modo, parecem evocar alguns trabalhos da irmã (uma bela dança, numa cena de arquivo em particular), num diálogo impossível, “direto”, em que à imagem da irmã morta, documento definitivo e único, imperturbável mesmo que faça parte de uma coleção in vitro, vem se juntar horas e horas de encenação, de “fluidez” e “dispersão”, e ao “diário” escrito como carta, posições sempre mais trágicas para a memória de Elena, enquanto imagem, do que para a de Petra, como diretora/performer. Aí, a ausência de um “Para” (Elena) aparece como complemento ideal a esse título que receberá todas as imagens sobre si de volta, todas as imagens do que ela viveu, “vivas outra vez”, no tumulto e no túmulo nada orgânicos de uma overdose pictórica.

Enquanto Duras nos diz sem rodeios as palavras do Fim (“destruir, disse ela”), Petra nos bombardeia com imagensintactas, reorganizadas, esperando diálogo, sua vez de falar. As únicas que dizem respeito a escombros, ao buraco que ficou junto à ausência de Elena (uma ausência que só aquela família saberá dizer o nome, e que filme algum poderá dizê-lo em seu lugar – e talvez nem mesmo as imagens que restaram dela), parecem ser a dos pais: os olhos arregalados da mãe, que nunca mais será a mesma depois da perda; e o silêncio do pai (único gesto total, talvez enorme, no filme), que, elidido (será ele vítima de alguma mágoa? De algum abandono? Ele decerto é o maior dos fantasmas, aqui) durante quase toda a duração, não poderá desferir, ciente dessa ofensa ontológica, uma palavra sequer por sobre as imagens da filha, documentos insondáveis que Petra esmiuçará até o puir, até o ganhar do sentido, o que, isto sim, é o maior desastre. Se a oralidade desta carta de Petra existe numa falta de necessidade ao enviá-la (para quê? Elena aqui não lê, leem por ela; não sobram espaços, por entre as imagens que povoam “seu filme”, para que possamos imaginá-la, para que fiquemos a sós com ela – ela só volta para ouvir) é porque com Elena, Petra parece enterrar, em filme, as primeiras e últimas imagens da irmã (e não serão, as duas, a mesma?), as únicas “relíquias” que restaram, e nos indicar, objeto ainda mais triste do que todo o clima que paira, que “aqui jaz o teu fantasma, Elena”, porque aqui crê-se que é matando este morto queridíssimo (reexibindo e reencenando suas imagens, relendo, por outra boca, as suas palavras) que ele reviverá. Nessa imensa sequência de found footages fica o relato “à força” de uma segunda morte – ritualizada na leitura da carta final de Elena, momento constrangedor em que o fantasma não pode levar consigo nem mesmo o silêncio de suas últimas letras que só a ele pertence –, dessa vez sem volta: a da imagem. Ou daquilo que é feito com ela.

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