Água e uma doença chamada amor

Pedro Azevedo Moreira, escreveu para o Caderno 3 do Diário do Nordeste – 29/5/2013

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Caminhando sozinha, Petra procura por Elena nas ruas de Nova York. O volume esmagador de lembranças que a cineasta guarda de sua saudosa irmã é equiparável ao número de transeuntes que vêm e vão, infinitos, nas avenidas da megalópole. Estruturado como um recorte poético de memórias, “Elena” (2012) é um documentário atípico na experiência filmográfica brasileira recente; é um filme extremamente pessoal, mas de apelo universal genuíno. Assistir a “Elena” (2012) nunca deixa de ser uma invasão de privacidade. Afinal, o que vemos na tela é constituído em grande parte por imagens de arquivos pessoais resgatados por Petra. Contudo, ao sublimar essas lembranças tão inconsoláveis de sua infância, a cineasta promove uma aproximação com o público pelo potencial de imersão de sua narrativa, se expandindo do particular ao universal.

Longa revela, pelos olhos da diretora, as memórias da irmã, encontrada morta, aos 20 anos, num apartamento de Nova York

Em 1990, aos 20 anos, Elena Costa comete suicídio por overdose de medicamentos. A cidade de Nova Iorque consumira seu corpo adoecido, um corpo que não podia viver sem arte, que sem arte preferia morrer, um corpo vazio. É através diálogo imaginário entre Petra e sua irmã apresentado na narração em off da cineasta que entendemos (ou buscamos entender) a natureza conflituosa da protagonista. Onipresente na narrativa, Elena é uma força da natureza, e embora a cineasta tente enquadrar os limites de sua personalidade em termos gerais (“Ela é assim”, afirma Petra categoricamente ao se referir à irmã em certa altura do filme), o âmago de sua existência será sempre um mistério digno da alcunha criada para a divulgação do filme: Quem é Elena? Um mistério sedutor. Tratando-se de um recorte de fragmentos de imagens de família somados ao material expressionista/impressionista filmado por Petra, é curioso perceber que a tradição de documentar dos Costa imprime um enorme potencial cinematográfico nas filmagens de arquivo de Elena, quase como se aqueles momentos resgatados só fizessem sentido quando montados lado a lado.

São raros os exemplos cinematográficos em que a música completa a imagem de maneira tão orgânica. Quando em certo momento começa a tocar “Valsa pra Lua”, de Vitor Araújo, o flerte de Elena com a lua em suas filmagens caseiras e danças apaixonadas ganha uma força descomunal; a música significa a imagem e vice-versa. Se há algo que Petra Costa sabe fazer em seu cinema é criar uma multiplicidade de significantes através das ferramentas de estética.

Como não poderia deixar de ser, “Elena” promove uma aproximação entre as três figuras centrais de sua narrativa: Elena, Petra e sua mãe. O “efeito Elena” atravessa todo o documentário, mas não restringe o potencial discursivo do filme ao reles estudo de caso. Pelo contrário, ao falar de Elena e de sua mãe, a cineasta fala de si mesma, se redescobre e ressignifica as feridas de seu passado. Assim, “Elena” é tanto um filme sobre Elena quanto um filme sobre Petra.

Uma explosão de poesia e lágrimas. O choro, elemento fundamental na linguagem do documentário, se transforma numa via de mão dupla. Uma das catarses mais intensas que pude experimentar em toda a história da minha relação com a sala escura e desde já um dos fortes candidatos a melhor filme do ano. Contagioso, “Elena” deixa seu público adoecido de amor, basta tocá-lo para vê-lo se transformar em água… Ou lágrimas. Por isso, ficamos adoecidos de amor por “Elena”.

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