Acho que o papel da arte é esse, não é? Falar

Thiago Dantas, blog Outra Página 16/5/2013

Petra,

Na última sexta-feira assisti ao filme que você fez a respeito de sua irmã, Elena. Fiquei muito impressionado. Ele era muito bonito.

A combinação de sua voz, tão doce e baixa, com aquelas imagens, recortes de registros e música, fizeram com que eu me sentisse íntimo e próximo de você e de Elena. Veja só que bobagem! Eu, que nunca as conheci, estava ali, numa sala escura, não só interessado como também absorto em suas vidas. Era como se estivesse lendo (vendo?) por cima dos ombros uma carta endereçada a outra pessoa. Como se o real destinatário soubesse de minha indiscrição, mas não se importasse.

De certa maneira eu fiz mesmo isso, não fiz? Na verdade, você que fez quando mostrou as cartas em áudio que sua irmã tinha feito durante o tempo em que esteve em Nova York querendo ser atriz de cinema. Achei bonito demais da conta o sonho dela. E mais ainda a maneira com que ela encontrou de descrever isso. O que você escolheu filmar (e o jeito que você fez isso) também foi lindo. A câmera na mão, a falta de foco, o excesso de luzes. Tudo que eu imaginaria a respeito da cidade e das sensações que Elena descreveu nos áudios estava ali, concreto, graças à você. Acho que você também imaginou o que ela passou do mesmo jeito que eu.

Mas não sei, sabe, Petra. Fiquei incomodado. Assim, de verdade. Porque ao mesmo tempo em que eu estava intrigado (e eu juro que estava!) sobre o destino de sua irmã perdida, comecei a achar que a reconstrução dos lugares por meio das imagens, da música e até das entrevistas (especialmente a que fez com sua mãe) eram forçadas. Desculpe. Não quero te chamar de oportunista. Quando o filme chegou ao final (na verdade, antes disso) eu sabia que você não era. Só que essa sensação me acompanhou por um tempo – em sequências inteiras. Fiquei pensando que talvez Elena, o longa, fosse muito mais forte se as cenas fossem menos maquiadas, menos posadas. Fiquei pensando até que ponto o que você dizia era verdadeiro. Se as palavras – tão bonitas! – tinham sido pensadas ou repensadas (mesmo sabendo que elas eram frutos de um roteiro, porque documentários tem roteiros) ou se você falava mesmo daquele jeito. Se as fusões nos quadros, se as transições de imagens e se a teatralidade da coisa toda buscava emular algum momento ou ludibriar pelo simples gosto de manipular. Na parte em que você faz aquela espécie de dança (com as mãos) para falar sobre seu renascimento/superação, por exemplo, cheguei a desacreditar em tudo.

Depois fiquei pensando se isso não era a maneira que você encontrou de exorcizar seus demônios e sentimentos. Porque eu sei que você sentiu de verdade tudo aquilo. Talvez não daquele jeito. Ou talvez exatamente daquele jeito, não sei. (Abro um parentese para confidenciar algo. Aquela coisa que sua mãe disse no momento chave do filme, que ela pensou em… Você sabe, me deixou deveras emocionado. Lembrei da pessoa que mais amei na vida. E das coisas que ela me contou sobre o acontecimento mais triste de todos. E aí senti muito. Por causa do filme, por causa de você e por causa dela.)

Me perdi. Não foi de propósito, eu juro. Voltando a falar sobre a suposta artificialidade… Mandei tudo as favas no final. Quando vi você e seus pares submersos, flutuando, entendi, finalmente, que tudo era verdade, assim, doído mesmo. Porque a metáfora, embora fosse miraculosamente construída (aliás, parabéns à você e a seus diretores de fotografia por a escolha da luz e dos ângulos – vê-las ali, de cima, foi mais do que lindo), dizia muito sobre uma sensação real.

Acho que arte o papel da arte é esse, não é? Falar. Seja com as verdades tangíveis ou as verdades que a gente cria porque elas não existem fora da gente. E sabe, você falou. Comigo, com sua irmã e, tenho certeza, com quem quer que tenha assistido seu filme.

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