A memória é uma ilha de edição

por: João Carlos Gonçalves – Not@ Alta ESPM – 16/5/2013

O tema da memória sempre me fascinou a ponto de virar tema de minha tese de doutorado. Mais de dez anos se passaram desde a defesa de meu trabalho e eis que, assistindo ao belo e tocante filme “Elena” de Petra Costa, me vi redescobrindo este tempo por mim vivido: é o poder da memória.

O filme-poema é narrado pela própria diretora que, com sua voz entoa pausadamente, quase silenciosamente, uma conversa com a irmã ausente, como se fosse “lendo” uma carta a ela dirigida. Esta história de dor e amor, nos coloca como ouvintes-cúmplices da narrativa e ao seu final somos convocados a redescobrir em nós mesmos as nossas “Elenas” naufragadas.

A narradora-personagem se lê e se revê no que narra. Sujeito que se perde como indivíduo – pela linguagem – e se reencontra na representação – na linguagem. A travessia de Petra pelas ruas de Nova York procurando vestígios mnemônicos da irmã Elena que nesta mesma cidade desistiu de viver, acaba por se transformar em sua “memória inconsolável”. Nesta busca, a linguagem visual, principalmente a fotografia impressionista, com seus jogos de luz e imagens desfocadas, traduzem plenamente seu estado de espírito, como se estive ali para resgatar uma lembrança ou algo que pede para não ser esquecido. A própria definição de lembrança como capacidade de interpolações infinitas naquilo que já foi é o descaminho de Petra.

A nós, espectadores, é ofertado um trabalho de escuta sensível que nos aproxima da presença-ausência de Elena: uma palavra, uma frase, um cheiro, uma cor, fragmentos que vão se interligando e nos aproximando, pouco a pouco, de uma cena que se relaciona com um passado, ao mesmo tempo longínquo e próximo: somos parceiros de Petra nesta sua procura.

A narradora percorre sua vida/sua história e neste caminhar retrospectivo retoma as bifurcações, as fendas, as frestas e as brechas deixadas, reencontra nesta travessia os sinais embaçados-desfocados da associação presente/passado, os quais tenta rearticular, fazendo deste movimento a tentativa de tornar a vida algo mais que “infinitamente pessoal”, de liberar vida daquilo que a aprisiona.
O que me mais chamou a atenção no filme foi o interessante entrelaçamento biografia-linguagem, aquilo que Roland Barthes chama de Biografema. Diferente da biografia pura, o biografema evoca o passado mas, ao mesmo tempo, invoca o espectador-ouvinte, o convida a fantasmar; a compor com estes fragmentos da memória do narrador, um outro texto que acaba sendo, ao mesmo tempo seu e deste narrador ouvido-visto.

Lembrar-se por amor ao passado e, sobretudo, por amor ao presente e a sua necessidade transformadora. Walter Benjamin indicia a superioridade do lembrar sobre o próprio viver, postulando que um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois. Retomada do passado pela palavra.

A meu ver, a grande “sacada” do filme é transformar a delicada Narrativa em potência transformadora, quase como uma forma de alimento da experiência, por mais dolorosa que esta possa ser… narrar para transformar a experiência da dor em experiência do amor. Narra-se no presente, resgata-se o passado e projeta-se o futuro: algo muda e algo permanece no rio da memória. Não é casual a impactante e visceral cena das Mulheres-Ofélias boiando (renascendo?) nas águas do “rio”.

Assim, o tempo, relacionado com a experiência, corresponderia à antiga parábola do rio de Heráclito: somos sempre a imagem de Heráclito, vendo-se refletido no rio e pensando que o rio não é o rio, porque suas águas mudaram, algo ocorreu entre aquele último momento em que viu/vimos o rio e este.

Somos, portanto, algo cambiante e algo permanente. Somos algo essencialmente misterioso, como as águas de um rio, ou como o próprio tempo (rio infinito). Petra/Elena somos nós, nesta eterna dança com o tempo, embalados pelos sons da memória.

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