A figura arquetípica do casal: aplicando Barthes a Olhos de Ressaca, de Petra Costa

Texto de Sean McPherson*

Tradução: Elidia Novaes

vera and gabriel

Olhos de Ressaca é um documentário da jovem diretora brasileira Petra Costa que, em apenas 20 minutos, consegue retratar toda uma história de amor profundo entre dois idosos. Os amantes, embora não seja revelado ao longo do filme, são Vera e Gabriel, avós maternos de Costa. Mesmo que ela não exponha sua ligação íntima com os sujeitos, nesse sentido, seu trabalho é muito parecido com o livro A Câmara Clara de Roland Barthes. Barthes, especialmente na segunda metade de sua obra, permite que o leitor invada o mundo particular de sua família, principalmente quando detalha sua tristeza pela morte da mãe. As teorias que Barthes desenvolve sobre a fotografia também podem ser aplicadas ao trabalho de Costa, apesar de Barthes estar permanentemente tentando distinguir fotografia e cinema. Sendo um documentário, Olhos de Ressaca não é “ficção”, e algumas de suas características se prestam a uma análise fotográfica.

Na verdade, fazendo Olhos de Ressaca, Costa parece ter combinado o poder da fotografia e o do cinema. Barthes vê o cinema como uma forma de arte que tem o poder de emocionar, de nos proporcionar uma catarse que a fotografia não consegue. Barthes sugere que, por essa razão, ele não considera a fotografia como arte, mas um mero fenômeno da loucura, perigoso e mágico. Sendo ela uma obra de arte ou não, Barthes diz que os melhores fotógrafos são os mitólogos, ou seja, aqueles que fazem retratos (no sentido mais estrito da palavra) dos seres humanos icônicos. Se um fotógrafo conseguir elevar o assunto a um nível arquetípico, ele terá feito o que a maioria dos fotógrafos não é capaz de fazer: dar vida ao sujeito em vez de trazer a morte, captar sua “sombra luminosa”, sua essência. Com Olhos de Ressaca, Costa criou um retrato (e, portanto, também um mito) de seus avós que faz exatamente isso; ela os filma de modo a fazer com que eles acabem simbolizando a figura arquetípica do casal idoso de amantes. Assim, ela nos fornece os aspectos da foto – seu punctum (quase), sua melancolia e seu mito – e ela os combina com o poder catártico do cinema para produzir uma obra de arte verdadeiramente brilhante.

O retrato

verayoungUma das fotos incluídas na minha cópia de A Câmara Clara é um retrato feito por Richard Avedon em 1963, intitulado “William Casby, nascido escravo”. Barthes utiliza esta imagem para tratar do poder do retrato fotográfico em transformar o assunto em uma espécie de máscara que, em última análise, representa um grupo inteiro de pessoas. Em outras palavras, Barthes está refletindo sobre a forma como alguns indivíduos podem se tornar figuras arquetípicas. Pois William Casby não é mais exclusivamente ele mesmo, mas também uma representação do escravo (libertado). Barthes explana desta forma:

Como cada foto é contingente (e, portanto, fora do significado), a Fotografia não pode significar (visar uma generalidade), exceto na medida em que assumir uma máscara. É esta palavra que Calvino usa corretamente para designar o que transforma uma face no produto de uma sociedade e de sua história. Como no retrato de William Casby, de autoria de Avedon: a essência da escravidão é aqui exposta: a máscara é o sentido, na medida em que é absolutamente puro (como era no antigo teatro). É por isso que os grandes retratistas são grandes mitólogos: Nadar (a burguesia francesa), Sander (os alemães da Alemanha pré-nazista), Avedon (“crosta superior” de Nova Iorque).

Se tentarmos descrever o que há na face de Casby que nos emociona, não demoramos muito a perceber que são seus olhos que falam diretamente para a câmera. Percebendo isso, Barthes tenta fazer uma distinção entre a fotografia e o cinema, “[…] a Fotografia tem esse poder – que está perdendo cada vez mais, sendo a pose frontal na maioria das vezes considerada arcaica nos dias de hoje – de me olhar diretamente nos olhos (aqui, além disso, há uma outra diferença: no filme, ninguém jamais olha para mim: é pelo proibido – pela Ficção)”. No documentário de Costa, no entanto, há inúmeros exemplos de cenas onde os amantes encaram a lente, desafiadoramente lembrando-nos de sua existência real. No segundo minuto do filme, por exemplo, vemos os “olhos de ressaca” da esposa, Vera, olhando para nós, enquanto seu marido Gabriel recita um trecho do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis. Vale a pena reproduzir aqui a citação integral:

Trazia não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saia delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. 

A próxima cena mostra o sol e sua sombra luminosa alongando-se sobre o mar, e com isso, não demoramos a vislumbrar a essência de Vera, que tanto atraiu Gabriel quando eles ainda eram adolescentes. Também começamos a entender Gabriel como um homem culto, sonhador e romântico. Além disso, deste ponto no início do filme, já foi estabelecido e reestabelecido o tema central: o amor (mais especificamente, o amor que dura uma vida inteira). Portanto, além de ser um retrato no sentido mais amplo e mais biográfico da palavra (com o uso de citações, vozes e múltiplas tomadas), Olhos de Ressaca também mantém traços do antigo gênero do retrato tradicional.

A melancolia

melancoliaCosta usa a melancolia da fotografia para realçar a beleza e eficácia sentimental/ nostálgica/ emocional de seu filme. Em seu livro, Barthes inventa a ideia do punctum de uma foto, aquilo que nos dá uma picada emocional, a coisa inexplicável que nos faz perder a indiferença em face de uma foto e começar a amá-la. Ele diz que, muitas vezes, o punctum é um detalhe em uma foto, particularmente uma boa foto, ou a mensagem temporária que transmite. Eu diria que, em Olhos de Ressaca, o tempo, sem dúvida, nos “dilacera” (para usar uma palavra favorita de Barthes). Através de tomadas em primeiríssimo plano, notamos a extrema velhice do casal, e essas tomadas se justapõem a fotos e sequências mostrando vários jovens de uma forma que enfatiza a passagem do tempo. Assim vemos que, se eles não morreram, isso deve acontecer em breve. Por isso, o punctum de Olhos de Ressaca seria temporário, caso seja verídico.

No entanto, de acordo com Barthes, o movimento quadro-a-quadro que acontece na mídia cinematográfica impede cada imagem de nos danificar; isso faz com que não possa haver um punctum. De fato, há um alívio nessa mudança constante de imagens estáticas e tomadas (embora a sombra da melancolia da foto na arte do cinema ainda permaneça). Quando um diretor edita seu material bruto, pode corrigir as tomadas até um ponto culminante e uma catarse subsequente, algo que não se pode alcançar com uma única imagem congelada. Assim, mesmo em um filme de ficção, pode-se usar a melancolia da fotografia para influenciar os sentimentos do público e chegar a um crescendo artístico. Sendo o cinema uma arte derivada da fotografia, a melancolia sempre estará presente. Barthes explica isso melhor quando analisa uma foto de sua mãe que ele chama de Fotografia do Jardim de Inverno. Quando ele escreveu o livro, sua mãe já tinha morrido, e a Fotografia do Jardim de Inverno é uma imagem que foi feita quando ela ainda era um bebê. Por esta razão, a foto é comovente para Barthes de um modo particularmente profundo, e ele pondera por um momento sobre a falta de alívio dessa foto em comparação com o que obtemos de um filme:

Aqui, novamente a Fotografia do Jardim de Inverno. Eu estou sozinho com ela, em frente a ela. O círculo está fechado, não há como escapar. Sofro, imóvel. Cruel, deficiência estéril: eu não posso transformar minha dor, eu não posso deixar meu olhar à deriva; nenhuma cultura vai me ajudar a expressar o sofrimento que estou experimentando, inteiramente no nível da finitude da imagem (é por isso que, apesar de seus códigos, eu não posso consigo ler uma fotografia): a Fotografia – minha Fotografia – é sem cultura: quando é doloroso, nada nela pode transformar a dor em luto.

Na página anterior, Barthes afirmava explicitamente o que ele apenas sugere aqui sobre a diferença que vê entre a fotografia e o cinema:

A imagem fotográfica é cheia, abarrotada: não há espaço, nada pode ser adicionado a ela. No cinema, cuja matéria-prima é fotográfica, no entanto, a imagem não tem essa completude (o que é uma sorte para o cinema). Por quê? Porque a fotografia tirada em fluxo, é impelida, incessantemente atraída para outros pontos de vista; no cinema, sem dúvida, há sempre um referencial fotográfico, mas esse referencial muda, não faz nenhuma alegação em favor de sua realidade, não protesta contra sua existência anterior; ele não se apega a mim: ele não é um espectro .

Porque a mídia cinematográfica, até certo ponto, transcende o aspecto frustrante e perturbador da fotografia, eu quase concordo com o argumento de Sophia Beal em seu ensaio dedicado ao retrato de corpos no documentário de Costa. Beal diz que os close-ups acabam revelando os corpos dos idosos sem tentar chocar-nos com a perspectiva de sua (e nossa) morte iminente. Na verdade, ela atribui o sucesso do filme ao que ela vê como uma celebração do amor entre pessoas mais velhas: “As representações de intimidade física entre pessoas jovens sadias sempre dominaram as artes, mas o desejo de finalmente ver a sensualidade dos idosos abordada atenciosa e criativamente no cinema pode explicar o sucesso que Olhos de Ressaca teve entre os críticos” . Gostaria de dizer, no entanto, que a pele dos idosos age inevitavelmente como um lembrete da morte, independente de quanto esforço façamos para pensar sobre a beleza de uma maneira nova. Barthes atribuiria a pouca perturbação às técnicas do cinema: movimento, mudanças de tomadas, a música que acompanha as sequências e a trajetória do filme até um final que nos comove em muitos aspectos, como num romance. Portanto, Costa é capaz de 1) mostrar-nos tanta morte sem frustrar-nos por completo e 2) jogar com a melancolia, usá-la como uma ferramenta que a ajude a cumprir a meta de nos comover e de construir um retrato realista/ abrangente do amor entre Vera e Gabriel, que também inclui a escuridão, o dissabor.

A figura arquetípica do casal

casal1Além de criar uma catarse, Costa tem outro objetivo: ela quer transformar seus sujeitos em figuras arquetípicas. Mais especificamente, ela quer desenvolver um mito sobre o poder do amor dando sentido à vida e superando o medo da morte. Devo também definir melhor o tipo de amor, um amor romântico muito longevo, mais e mais profundo a cada dia. A primeira tomada já sugere a proximidade entre Vera e Gabriel como resultado de muitos anos vividos ​​juntos: veem-se duas sombras cujos donos caminham de um modo que revela sua idade avançada, uma das sombras obviamente pertencente a um homem e a outra a uma mulher. Estas sombras desaparecem depois de alguns passos na sombra grande de uma árvore. Em paralelo, uma tomada final sugere que os amantes pretendem seguir juntos até o túmulo: Vera e Gabriel sopram umas velas, saindo da penumbra para a escuridão total.

Estas tomadas cultivam um sentimento de profundo amor que talvez mereça o título de mito, embora não eleve necessariamente os amantes à condição de símbolos universais. Costa faz isso 1) ao manter o anonimato e uma onda esotérica afastada de seu documentário, e 2) ao dedicar parte do documentário ao legado dos amantes: sua família. Com relação à primeira técnica, podemos listar muitas dados que Costa não fornece ou pelo menos não ficam muito claros: por exemplo, os nomes dos sujeitos, Vera e Gabriel, não são informados até os créditos finais. Também não se sabe, como mencionei antes, que esses dois sujeitos são de fato os avós maternos da diretora. Em termos de espaço, nunca se sabe ao certo onde os amantes estão; só descobri lendo o ensaio de Beal, que revela que muitas das cenas se passam em Belo Horizonte, onde se encontraram pela primeira vez, adolescentes (4). Entre as imagens do mar e de uma fazenda rural (cujo nome é visto mas não nos remete nem ao menos a um estado brasileiro específico), não seria possível saber esses dados apenas assistindo ao filme. Finalmente, quando Costa começa a entremear algumas fotos e filmagens do passado do casal, não nos deixando completamente certos quanto ao número de filhos que tiveram juntos (na maior parte do tempo, parece haver três, mas pelo menos uma vez uma quarta “filha” aparece) ou, entre outras coisas, quanto tempo eles viveram na fazenda. Em geral, as informações que poderiam nos ajudar a compreender melhor algumas das imagens, sons e vozes não está visível, o que tornaria possível interpretar os amantes como um símbolo de todos os namorados de infância que estão juntos pela vida toda. De acordo com Beal, “o fato de essa informação ser omitida do filme aumenta a qualidade onírica que a diretora queria transmitir (Costa, entrevistada por e- mail)”, isto é, a falta de tal informação adiciona uma camada de possível interpretação simbólica dos sujeitos que só se pode ter no mundo dos sonhos, e não na realidade.

O legado da família dos amantes também ajuda a convertê-los em figuras lendárias. Imediatamente após mostrar uma sequência de que só se pode supor ter sido o casamento de Vera e Gabriel, o filme retorna ao presente com uma tomada dos recém-casados, agora velhos novamente, dançando. O take capta o reflexo deles contra a janela e é possível ver as folhas de uma árvore pelo vidro. A imagem deles dançando lentamente, sobreposta à imagem da árvore, nos faz pensar em fertilidade. Vera fala das várias vezes em que esteve grávida, e muitas fotos e sequências são dedicadas a ela como epítome da figura maternal. Além disso, as tomadas dos amantes caminhando pelo campo onde eles começaram sua nova família evocam uma nostalgia maternal, “uma habitabilidade fantasmática”, como diria Barthes. Finalmente, ao incluir a voz de Vera falando da morte de sua mãe, Costa simultaneamente: 1) estende ainda mais sua linhagem familiar até o passado distante e 2) por acaso, ela vincula Olhos de Ressaca ainda mais a A Câmera Clara, um livro cujo tema central consiste no trauma pela perda da mãe. Ao destacar a fertilidade de Vera, sua fertilidade como a mãe e também mencionar seu passado, o legado familiar estabelecido pelos amantes torna-se um teste a seu prodígio, sua grandeza agora de proporções míticas.

O filme termina com os amantes contando que já não necessitam mais da fala para se comunicar; basta olhar-se nos olhos e sentir o toque do outro para saber como estão e o que pensam. No final de Olhos de Ressaca, Costa conseguiu convencer-nos dos poderes quase sobrenaturais deste casal, o casal que agora aparece não só nesta obra de arte, mas também em muitas outras, como um símbolo eterno. Em um intermezzo intitulado “Knee Play 5”, da ópera Einstein on the Beach, por exemplo, ouvem-se versos que parecem descrever os amantes em Olhos de Ressaca (uma foto de Robert Mapplethorpe enfocando os criadores da ópera, o dramaturgo Robert Wilson e o compositor Philip Glass também aparece em A Câmara Clara):

Dois amantes sentados em um banco de parque, com seus corpos se tocando, de mãos dadas ao luar. Houve um silêncio entre eles. Tão profundo era seu amor que eles não precisavam de palavras para expressá-lo. E assim eles se sentaram em silêncio, em um banco de parque, com seus corpos se tocando, de mãos dadas ao luar.

Se você quiser assistir ao filme, eis o link em Vimeo: http://vimeo.com/15069615

Obras Citadas

Barthes, Roland. A Câmara Clara. Nova Iorque: Hill and Wang, 1980.

Beal, Sophia. “O jeito dos corpos idosos.” (rascunho, não publicado até o momento)

Costa, Petra. Dir. Olhos de Ressaca. DVD. 2009.

Glass, Philip. “Knee Play 5”. Einstein on the Beach. CD. Sony Classical, 1986.

Machado de Assis. Dom Casmurro. São Paulo: Editora Martin Claret, 2002.

*Sean McPherson é americano, estudou na Tulane University, em Nova Orleans, nos Estados Unidos. Em seu blog, gosta de escrever sobre cinema, música e fotografia.

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