O ÍNTIMO, O POLÍTICO E AS FUNÇÕES SOCIAIS DO DOCUMENTÁRIO
2 de agosto de 2013

Inovar na forma é político

ELENA, ao discutir temas tabus do universo feminino e da saúde mental, bem como retratar alguns dilemas subjetivos da juventude, transporta assuntos do mundo privado para o espaço público e cria ambientes coletivos de discussão e diálogo sobre questões socialmente delicadas e complexas.

Além disso, se distancia do cinema brasileiro documental contemporâneo, que em geral privilegia temas polêmicos e de denúncia relacionados a certa “realidade crua” – como a pobreza, a corrupção, a condição de minorias etc. Ao retratar um mundo íntimo, privado, ELENA se distancia dessa tradição, e segue a linha de outros documentários pessoais da última década (Diário de uma busca [2011], de Flavia Castro; Santiago [2007], de João Moreira Salles; 33 [2003], de Kiko Goifman; entre outros). Mas ao retratar uma história pessoal e o universo privado, deixa de ser político?

João Moreira Salles,  durante o debate “ELENA e a perspectiva da encenação”, realizado no Itaú Cultural, lembra que até pouco tempo havia certa resistência por parte dos documentaristas de se colocar no próprio filme, de transformar a obra em algo referente a si mesmo. Segundo ele, há diversas hipóteses para isso, e entre elas está a tradição militante do documentário brasileiro, que de forma geral é voltado para a narrativa em terceira pessoa, sobre algum tema polêmico ou de denúncia que são sempre externos ao documentarista. Esse aspecto foi marcante no documentário brasileiro até o fim da década de 1990, pontua Salles, mas começou a mudar, entre outros elementos, pelo cinema de Belo Horizonte, onde acontece há alguns anos o Festival do Filme Documentário e Etnográfico.

Na opinião de Salles, historicamente, o documentário brasileiro respondia basicamente à equação “quem tem, filma quem não tem”, e essa própria estrutura de produção já revelava as relações de poder e de classe no processo. O documentário que leva para as telonas a experiência pessoal tem modificado essa estrutura ao trazer a dimensão privada daquilo que está perto, próximo ao documentarista, e esse olhar tem mudado radicalmente a forma de se fazer documentário.

“É um cinema que muda o próprio cinema”, inova na forma e muda a perspectiva do olhar do expectador, convidado a refletir desde outros lugares. Para Salles, isso é também um grande feito político, pois quebra o conservadorismo dos moldes estabelecidos em que sempre prevalecem o longe e o brutal (a realidade externa ao documentarista, dura, brutal). ELENA, ao trazer o afeto e o próximo para o cinema, em uma linguagem original e poética, “vai na contramão do cinema brasileiro e o humaniza”, nas palavras de Salles.

Sobre essas discussões, acesse:

Documentário: verdade ou encenação?  – Comentário de João Moreira Salles no debate “ELENA e a perspectiva da encenação”, realizado no Itaú Cultural.

Documentário: o íntimo é político? – Comentário de João Moreira Salles no mesmo debate.

As funções sociais da arte e condição de artista na sociedade

ELENA é um filme que nasce da dor de uma tragédia, de uma falta. A narrativa, nas palavras de João Moreira Salles, “dá nome a essa coisa, organiza essa dor para incorporá-la e seguir adiante na vida. ELENA simboliza o que não tem nome. E essa é uma das funções da arte, segundo Salles: “nomear o que ainda não tem nome”.

Assim, a elaboração do luto através da arte é uma forma de lidar e entender essa dor, sua origem e seus caminhos. O teórico e crítico do cinema brasileiro Ismail Xavier, no debate sobre o filme “Aquilo que não se liquefaz”, no Departamento de Cinema, Rádio e TV da ECA, em parceria com o Cinusp, comenta que “[…] uma das coisas que me impressionou no filme é a constante liquefação de tudo, menos daquilo que, no final, é dito na voz da Petra. Elena é memória inconsolável, então é pedra. Aquilo que não se liquefaz, aquilo que não vai se dissolver”.

Desde outra perspectiva sobre a função social da arte, Ivana Bentes, no debate “O uso político e social da arte”, lembra que levar temas complexos e delicados do universo subjetivo para o cinema é uma forma de visibilizar aspectos da vida que muitas vezes são rodeados de tabus e preconceitos, e isso “possui um caráter terapêutico”. Para ela, uma das características mais perturbadoras do cinema, hoje, é a possibilidade de conviver com os mortos, de experimentar a falta de alguém pela própria vida.

O psicanalista, filósofo e pesquisador da Fiocruz Carlos Estellita-Lins acompanha a reflexão de Ivana Bentes no mesmo debate e lembra que é preciso pensar o suicídio não apenas como um acontecimento individual, mas como uma questão que envolve saúde pública e prevenção. E ELENA contribui para colocar o assunto em pauta e mobilizar informação (para saber mais sobre prevenção e posvenção do suicídio, acesse o eixo Saúde). Confira na íntegra o debate “O uso político e social da arte”.

ELENA também nos convida a refletir sobre a condição dos atores, atrizes e artistas de forma geral: se de um lado está a importância da arte em todas as suas manifestações – cinema, teatro, escultura, pintura etc. –, de outro também estão aqueles que dedicam sua vida a elas e encaram as dificuldades de se viver dessa arte. O filme aborda de maneira tocante a busca e os desafios da trajetória de Elena.

Neste vídeo, trechos do filme em que Elena passa por uma entrevista de casting, e também trechos da fala de Martha Kiss Perrone,  diretora de arte e preparadora de elenco de ELENA, durante o debate “Tornar-se mulher”, no MIS, evidenciam as pressões e dificuldades sofridas por Elena.

Seu sonho é o mesmo de muitas garotas e rapazes, em muitos países e através de gerações, de maneira que o filme também dialoga de forma especial com esse universo. Neste vídeo, grandes atores como Letícia Sabatella, Maria Flor, Heloísa Benicchio, Tatiana Ribeiro, Júlia Lemmertz e Alexandre Borges contam o que sentiram ao assistir ao filme.

O filme contribui, assim, para a abertura do diálogo entre jovens atores e atrizes sobre as pressões e desafios da carreira, e para a formação de espaços de apoio e discussão sobre o papel social da arte e a condição de artista na sociedade.

Acesse também:

O estatuto do documentário: verdade ou encenação?



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