COMPLEXO DE OFÉLIA: O LUGAR E OS DIREITOS DAS MULHERES NA SOCIEDADE
2 de agosto de 2013

Os dramas de Elena são transpostos para a tela a partir de fragmentos de seus diários e misturados aos pensamentos de Petra Costa – sua irmã e diretora do filme –, que, por sua vez, são levados ao filme através do recurso da voz em off. Já as confissões da mãe são flagradas por uma câmera que observa de maneira discreta o desenrolar da trama.

A composição dessas três vozes – das duas filhas e da mãe – remete, de forma sutil mas não menos contundente, aos desafios enfrentados pelas mulheres em diferentes momentos de suas vidas. O lugar da mulher na sociedade, os dilemas enfrentados por uma jovem mulher, a relação com o corpo, os desafios da maternidade: no desenrolar da história íntima e pessoal de ELENA, essas grandes questões aparecem de forma transversal na vida das personagens.

De acordo com o caderno Trabalho, corpo e vida das mulheres, elaborado pela Sempreviva Organização Feminista (SOF), em parceria com a Rede Economia e Feminismo (REF) e a Rede Latinoamericana Mulheres Transformando a Economia (REMTE), a análise do modelo social atual sob a ótica feminista passa por dois temas fundamentais: o papel da mulher na economia da sociedade e a mercantilização de todas as esferas da vida, que atinge as mulheres de forma específica. Nesse sentido, ELENA pode contribuir para as discussões sobre:

– A histórica interdição social da mulher e as lutas feministas pela conquista de espaço nas artes e na esfera pública.

– As formas de ação da mulher na sociedade e o sentido de resgatar a personagem clássica shakespeariana Ofélia no filme ELENA.

– A relação com o corpo e os padrões de beleza instituídos.

– Campanhas educativas e indiscriminatórias pela igualdade de gênero e contra qualquer forma de opressão da mulher.

Interdição e liberdade: a mulher nas artes e no espaço público

Bárbara Lopes, em artigo sobre o filme intitulado Sylvia, Elena e a arte à beira do precipício, para o site Blogueiras Feministas, comparou a trajetória de Elena à da escritora norteamericana Sylvia Plath. Ambas eram mulheres artistas, com uma força fora do comum. Eram também depressivas, terminaram por suicidar-se. “Essas duas mulheres, mesmo que em épocas diferentes, se viram diante dos limites para a vivência de mulheres como artistas, os padrões de comportamento e aparência esperados”, escreve Lopes.

A história da escritora americana Sylvia Plath, que se matou em 1963 com 30 anos, já foi recontada diversas vezes, enquanto ELENA, por sua vez, é o resultado do mergulho de sua irmã e diretora do filme, Petra Costa, na vida da atriz, que morreu em 1990, aos 20 anos.

Apesar da distância temporal, Marta Baião, do Centro Informação Mulher (CIM), em depoimento sobre o filme, relembra que historicamente as mulheres sempre sofreram interdição para as artes como escritoras, como filósofas, no espaço público de forma geral, e na maior parte das vezes, atuavam na clandestinidade. Por outro lado, as mulheres sempre foram objeto da inspiração masculina: os homens pensaram, desenharam, representaram a mulher a partir dos seus desejos e criaram uma imagem do feminino a partir desses desejos. E quando a mulher sai dessas representações para o mundo público, parecem não se adequar, “é como se não coubessem ali”, observa Baião.

Segundo ela, o filme remete a esse deslocamento e inadequação a partir de imagens poéticas e de uma linguagem que lembra a obra da escritora brasileira Clarice Lispector (1920-1977), e também recorda as reflexões da escritora inglesa Virginia Woolf (1882-1941) sobre o lugar da autoria feminina no texto Um teto todo seu.

Essa interdição da mulher a se expor e a ocupar lugares sociais historicamente definidos e significados pelo masculino levou também a jornalista, escritora e documentarista Eliane Brum a refletir sobre o filme. No artigo Petra, uma mulher em busca do próprio corpo, ela se pergunta: “Será que para se tornar mulher é preciso se mutilar, e só então ganhar pernas e dançar, como em A Pequena Sereia?”.

Brum não se refere à história da Disney, e sim à história original escrita por Hans Christian Andersen: uma jovem sereia se dispõe a renunciar a vida nos mares e sua identidade com o objetivo de conseguir uma alma humana e o amor de um príncipe humano, mas morre ao percorrer esse sonho.

Em uma cena do filme ELENA (1’51), Petra conta como conheceu a verdadeira história da Pequena Sereia por sua irmã Elena, e como se sentiu enganada ao saber do desfecho trágico da sereia sonhadora. E Brum continua sua reflexão: “Será que ao ousar deixar a casa familiar para buscar um outro destino uma menina será punida, como a pequena sereia, que aceita ter a voz arrancada para habitar o mundo do príncipe como mulher?”.

Elena pode ser essa sereia. E para Marta Baião, é a “menina artista que autointerditou todos os seus desejos e seus prazeres, e não se permitiu gozar o prazer supremo de ser artista”.

A busca de Elena por seus sonhos e por definir seu lugar no mundo, e o desfecho trágico de sua vida remetem, por sua vez, à personagem clássica Ofélia.

Ofélias: da impossibilidade de agir, às ruas

ELENA resgata a imagem de Ofélia, da obra Hamlet, de Shakespeare. Eliane Brum, também no artigo Petra, uma mulher em busca do próprio corpo, escreve sobre a relação das duas irmãs com essa personagem: “Elena é uma Ofélia, pensa Petra. Ofélia, a noiva de Hamlet que se suicida na peça de Shakespeare. Ela, Petra, também é uma Ofélia. São muitas as Ofélias que andam por aí nas ruas deste mundo, acredita Petra. Meninas que no vir-a-ser mulher afogam-se no rio de desejos e sensações, de excessos do sentir e do querer. Jovens que submergem nesse feminino perturbador sem jamais conseguir voltar à superfície”.

As referências a Ofélia no filme remetem a esse fim trágico, mas também o ressignificam, de acordo com reflexão de Martha Kiss Perrone, diretora de arte e preparadora de elenco de ELENA. Perrone conta como foi o processo de criação das cenas das Ofélias e as razões da escolha dessa referência. “O suicídio da Ofélia no Hamlet é uma manifestação de vida. Ela não pode agir. Finalmente, quando ela faz algo, é se matar”. De acordo com esse olhar, Ofélia se mata em um ato de rebeldia, como forma de exercer alguma liberdade sobre si mesma.

Mas essa era a Ofélia do século XVI. O filme resgata essa figura para repensá-la, e entre diversas releituras da personagem, Perrone retoma a de Heiner Müller, dramaturgo alemão que em 1977 escreveu a peça Hamlet Machine. Müller ressignifica o drama de Hamlet e também o de Ofélia. Hamlet entra no palco e declara não ser Hamlet. E em seguida, Ofélia entra para redefinir seu lugar como mulher, que sai da impossibilidade de agir para tomar as ruas:“Eu sou Ofélia, aquela que o rio não conservou. A mulher na forca, a mulher com as veias abertas, a mulher com overdose, sobre os lábios de neve. A mulher com a cabeça no fogão a gás. Ontem, eu deixei de me matar. Estou só, com meus seios, minhas coxas, meu ventre. Destruo os instrumentos do meu cativeiro: a cadeira, a mesa, a cama. Destruo o campo de batalha que foi o meu lar. Escancaro as portas para que o vento possa entrar e o grito do mundo. Despedaço janela. Com as mãos sangrando, rasgo as fotografias dos homens que amei e se serviram de mim sobre a cama, a mesa, a cadeira, sobre o chão. Toco fogo na minha prisão, atiro minhas roupas ao fogo. E boto fogo no meu peito, o relógio que era meu coração. Vou para a rua”.

A saída das mulheres para as ruas e sua libertação do “cativeiro do lar”, contudo, não significa a batalha da mulher contra o homem: é a reivindicação pela igualdade de gêneros e pelo companheirismo do masculino, nas palavras de Eleonora Menicucci, ministra da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres do Governo Federal. Em depoimento sobre o filme, Menicucci comenta as lutas das mulheres que saíram às ruas e suas conquistas: “As mulheres tomaram as rédeas de suas próprias vidas e de seus próprios trabalhos. (…) Estão mostrando ao que vieram, mas não para eliminar os homens de suas vidas, e sim para dizer ‘vamos ser companheiros’, para ser de igual para igual. (…) Esse século possibilita isso. Por que? Isso é decorrência de um movimento de mulheres no Brasil e no mundo, as mulheres chegaram ao poder, ao poder da autonomia. Pegaram as rédeas para remar a própria vida”.

A luta pelo direito de decidir sobre a própria vida e o próprio corpo

ELENA também aborda um tema caro às discussões feministas, que são as relações que as mulheres estabelecem com o próprio corpo a partir das pressões sociais dos padrões de beleza e das representações da mulher na mídia e na publicidade.

A Marcha Mundial das Mulheres – movimento social feminista internacional cujas principais bandeiras são a luta contra a pobreza, a violência sexista e a mercantilização do corpo da mulher, além da luta pelo direito de decisão sobre o próprio corpo –, em seus Cadernos, ajuda a explicar esse processo de opressão sobre o corpo da mulher:

“Na publicidade, a mulher é constantemente representada assim: um objeto de consumo, que, para ter valor, tem que seguir um padrão. Para atingir esse padrão, ela deve aceitar as condições do mercado e consumir uma enorme quantidade de produtos e serviços. As mulheres exibidas nessas propagandas viram ‘modelos de perfeição’, modelos que as mulheres perseguem como se fossem uma condição para sua realização.

Assim, a exposição da imagem e do corpo das mulheres como objeto contribui muito para colocá-las num estado permanente de insegurança com relação ao seu corpo.

A magreza das supermodelos é esperada daquelas que ‘se cuidam’ como ‘boas mulheres’. Hoje, cada vez mais jovens sofrem com transtornos alimentares como bulimia e anorexia. Segundo a Organização Mundial de Saúde, essas doenças estão entre as principais causas de morte de mulheres jovens”.

O filme deixa transparecer a preocupação constante de Elena com o próprio corpo, e a autoexigência para se adequar aos padrões que o mundo artístico e da exposição exigem. São cenas que ecoam o sofrimento de muitas mulheres frente a essa pressão e convidam a refletir sobre a importância da luta feminista contra a imposição de padrões de beleza e de comportamento excludentes, e pelos direitos de decisão sobre o próprio corpo e sobre a própria vida – em questões como a maternidade e o aborto, por exemplo.

Materiais relacionados:

A interdição da mulher. Depoimento de Marta Baião, do Centro Informação Mulher (CIM), sobre ELENA. Tema: a interdição histórica da mulher para as artes e para  espaço público.

Um teto todo seu. Ensaio da escritora inglesa Viriginia Woolf (1882-1941). Tema: o lugar da autoria feminina na sociedade.

Petra, uma mulher em busca do próprio corpo. Artigo de Eliane Brum para a revista Época. Tema: a busca pelo próprio corpo e pela identidade, e os desafios da mulher em busca de seus sonhos e realizações.

A Pequena Sereia (cena de ELENA, 1’51). Trechos do filme ELENA. Tema: a diretora Petra Costa narra como descobriu a verdadeira história da pequena sereia, que renuncia à vida no mar e termina morta na busca pelo sonho de ser mulher no mundo dos humanos.

Processo de criação das cenas das Ofélias. Trechos do filme ELENA e depoimento de Martha Kiss Perrone. Tema: a ressignicação da personagem Ofélia no filme: da impossibilidade de agir, à tomada das ruas.

Tornar-se mulher. Debate realizado no MIS. Tema: reflexão sobre a personagem Ofélia e a condição feminina na construção da identidade. O título do evento faz referência à histórica frase de Simone de Bouvoir “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”.

Mulheres saem às ruas. Depoimento sobre o filme ELENA de Eleonora Menicucci, ministra da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres do Governo Federal. Tema: as lutas das mulheres que saíram às ruas e suas conquistas: “As mulheres tomaram as rédeas de suas próprias vidas e de seus próprios trabalhos”.

–  Cadernos da Marcha Mundial das Mulheres. Tema: a luta contra a pobreza e a violência sexista, e a luta contra mercantilização do corpo da mulher e pelo direito de decisão sobre o próprio corpo.

Corpo e liberdade. Trechos do filme ELENA. Tema: a preocupação com o corpo e a aparência, e a pressão dos padrões de beleza sobre a mulher.

Acesse também: Rompendo o silêncio: contar para não esquecer, lembrar para não repetir



<<< voltar para Gênero, Mobilização Social