ROMPENDO O SILÊNCIO: CONTAR PARA NÃO ESQUECER, LEMBRAR PARA NÃO REPETIR
2 de agosto de 2013

Ao compartilhar uma memória de sofrimento e superação que tem como pano de fundo um momento histórico específico – a ditadura militar e os anos seguintes à abertura política – , ELENA incentiva que situações relacionadas ao universo feminino se tornem públicas pela narrativa das próprias mulheres e possam ser trabalhadas socialmente.

O filme conta uma história íntima e pessoal, mas ao mesmo tempo revela a potência de uma narrativa que reverbera entre outras mulheres e se transforma em voz coletiva. Com sua beleza e delicadeza poéticas, reivindica a voz da mulher não desde o grito, e sim desde o diálogo. Nesse sentido, ELENA suscita discussões sobre:

−a necessidade de socialização e denúncia de qualquer opressão e violência de gênero para fortalecer e pautar políticas públicas e ações sociais.

− o poder de transformação social e ressignificação da História a partir de narrativas de mulheres desde a memória e a experiência.

− o papel social da mulher na época da ditadura brasileira e nos anos que se seguiram à abertura política, e as violências específicas sofridas nesse período.

A narrativa como ferramenta de denúncia e transformação social

“A superação não se faz com esquecimento”, afirma a ministra da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres do Governo Federal, Eleonora Menicucci, em depoimento sobre o filme. “A delicadeza de ELENA mostra que é possível as mulheres ultrapassarem a solidão do sofrimento”, completa ela. Com esse comentário, Menicucci chama a atenção para o potencial do filme ELENA de incentivar a narrativa e a memória como forma de recordar e alertar para que situações que violam os direitos humanos de forma geral, e em particular das mulheres, não se repitam. No caso do filme, a ministra se refere a duas situações específicas: ao período de clandestinidade vivido pelas personagens na década de  1970 e 1980 – durante a Ditadura Militar e seus Anos de Chumbo –, e à violação dos direitos da mulher, como violência doméstica, repressão moral, ou ainda aos problemas de saúde femininos.

De acordo com a cartilha Mulheres em luta – por uma vida sem violência, elaborada pela Sempreviva Organização Feminista (SOF), a violência contra a mulher – seja ela física, moral ou psicológica – foi considerada durante muito tempo um problema privado, pertencente ao âmbito das relações afetivas e da família. Os movimentos sociais de mulheres no Brasil, contudo, trouxeram essa questão para o espaço público e a transformaram em tema político, e que por isso deve ser tratado também com políticas públicas. Essas ações de visibilização tornaram conhecida a frase  “o silêncio é cúmplice da violência”.

Hoje, com as lutas dos movimentos sociais feministas, o número de denúncias cresceu e segue aumentando, mas ainda é um assunto delicado. Diante da violência, muitas vezes os sentimentos das mulheres são de vergonha, humilhação, e até medo. Por isso, “é muito importante encorajar as mulheres a denunciar e buscar apoio o mais cedo possível. Esse apoio pode ser buscado no serviço de saúde, no sindicato, em um grupo de mulheres ou em amigas próximas”, orienta a cartilha da SOF.

Denunciar, visibilizar, narrar as situações de violência experimentadas pelas mulheres é fundamental para se conhecer essa realidade e garantir o fim da impunidade dos agressores, bem como auxiliar no direcionamento de políticas públicas e ações sociais para questões do universo feminino.

A Rede de Enfrentamento à Violência contra a Mulher, iniciativa da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres do Governo Federal, por exemplo, articula instituições/serviços governamentais, não-governamentais e a comunidade com o objetivo de desenvolver e fortalecer estratégias efetivas de prevenção. Também ajuda a pautar políticas que garantam o empoderamento das mulheres em relação aos seus direitos, a responsabilização dos agressores e a assistência qualificada àquelas em situação de violência.

Memória, história e resistência

O filme ELENA é uma narrativa que aborda diversas pressões sobre a mulher: desde a relação com o próprio corpo, até os desafios da maternidade. Também é um retrato pessoal sobre o Brasil pós-Ditadura Militar, sobre a geração que nasceu clandestina e cresceu entre os anos 1970 e 1980, com muitos sonhos e um futuro repleto de possibilidades.

Os pais militantes que sobreviveram à violência dos Anos de Chumbo repudiavam qualquer atitude repressiva e buscavam criar seus filhos na mais absoluta liberdade. O documentário Olhares – 15 filhos, de Maria de Oliveira e Marta Nehring, traz  o relato de alguns desses filhos de militantes presos, mortos ou desaparecidos. Através de depoimentos diretos e sensíveis, eles contam a história desse triste período político brasileiro.

No caso de Elena, uma das muitas filhas desses pais militantes, essa história teve um final triste, mas totalmente ressignificado pelo filme realizado por sua irmã. A diretora Petra Costa, ao recuperar a memória de sua família atravessada por um momento específico da história brasileira, nos convida a tentar compreender a violência contra a mulher e as pressões sofridas dentro do universo feminino desde uma perspectiva que é também histórica.

Nesse sentido, destaca-se a iniciativa de se discutir de forma ampla a violência contra a mulher na Comissão Nacional da Verdade (CNV). A CNV foi criada pela Lei 12528/2011 e instituída em 16 de maio de 2012 com a finalidade de apurar graves violações de Direitos Humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. Dentro da CNV, há um grupo de trabalho específico que pesquisa a violência contra a mulher na ditadura, suas consequências e impactos nesse período. Inclui a violência sexual e pretende dar visibilidade ao sofrimento não apenas das mulheres diretamente envolvidas nos conflitos dos movimentos sociais contra o terrorismo de Estado, mas também daquelas que participaram de movimentos de resistência e daquelas cujos familiares foram vítimas de perseguição política, mortos ou seguem desaparecidos.

No dia 25 de março de 2013, a  Comissão Nacional da Verdade e a Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva realizaram, em São Paulo, a audiência pública Verdade e gênero: a violência da ditadura contra as mulheres. Durante o evento, discutiu-se e relembrou-se a luta das mulheres na resistência à Ditadura e as violências a que foram submetidas nesse período.

Durante o evento, em sua exposição, a filósofa Ivone Gebara refletiu sobre o ódio particular que os torturadores sentiam pelas mulheres e suas raízes na sociedade patriarcal. De acordo com Gebara, as mulheres eram tratadas como se estivessem no lugar errado, fora do que a sociedade esperava delas – donas de casa, dóceis e amáveis[sobre o lugar da mulher na sociedade e a relação desse tema com ELENA, veja mais aqui]. “Nós mulheres, pela simples participação nessas lutas, já estávamos fugindo dodestino doméstico que a ‘natureza’ nos reservou. Pelo simples fato de estarmos lutando, já éramos consideradas desnaturadas ou traidoras da natureza, desobedientes aos papéis sociais aos quais deveríamos obedecer”, afirmou Gebara [acesse o texto da palestra de Ivone Gebara na íntegra, aqui].

Amélia Teles, ex-presa política, deu um emocionante depoimento durante o evento e narrou as torturas a que ela e seus filhos foram submetidos. “Eles usavam a maternidadecontra nós, torturavam nossos filhos e diziam que iam matá-los”, explicou Amélia durante a audiência. Teles foi presa com seu companheiro, sua irmã grávida e os filhos, e contou que os torturadores levavam seus filhos para vê-la em situações humilhantes. Foi a primeira vez em 40 anos que ela tornou pública sua história, em busca de justiça. Após o evento, Teles concedeu uma entrevista que pode ser conferida na íntegra aqui.

A ministra Eleonora Menicucci, que estava presente no evento, ressaltou na ocasião que “as mulheres precisam ser redescobertas na história da luta contra a ditadura. Não se recupera a memória se não se recupera a história das mulheres que fizeram parte e que também construíram essa história”.

Ao se narrar uma história a partir da memória – como é o caso de ELENA –, as experiências se tornam compreensíveis e ganham significado social. A história é construída socialmente nesse processo em que o passado se torna presente e ajuda a projetar o futuro por meio da narrativa. No caso da história específica das lutas contra a opressão social sofrida pelas mulheres, não é diferente.

Materiais relacionados:

Vídeo Contar para não esquecer, lembrar para não repetir. Trechos de ELENA e depoimento sobre o filme da ministra da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres do Governo Federal, Eleonora Menicucci. Tema: o poder de transformação social da mulher através da narrativa.

Cartilha Mulheres em luta – por uma vida sem violência, elaborada pela Sempreviva Organização Feminista (SOF). Tema: como romper o silêncio, cúmplice da violência contra a mulher.

Texto da filósofa Ivone Gebara para a audiência pública “Verdade e gênero: a violência da ditadura contra as mulheres”. Tema: por que e como a condição histórica da mulher se refletiu durante a Ditadura Militar.

Entrevista com Amélia Teles, ex-presa política, concedida após seu depoimento na audiência pública “Verdade e gênero: a violência da ditadura contra as mulheres”. Tema: a violência sofrida por Teles e seus filhos durante a Ditadura Militar e a luta por justiça depois de 40 anos.

Rede de Enfretamento à Violência contra a Mulher, iniciativa da  Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres do Governo Federal que articula instituições/serviços governamentais, não-governamentais e comunidade com o objetivo de desenvolver e fortalecer estratégias efetivas de prevenção da violência.

Olhares – 15 filhos. Documentário (19′) de  Maria de Oliveira e Marta Nehring. Tema: depoimento de 15 filhos de militantes presos, mortos ou desaparecidos. Contam a história do período político mais triste do país – uma história que muita gente não viu e ignora existir até hoje.

Acesse também: Complexo de Ofélia: o lugar e os direitos das mulheres na sociedade



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